domingo, 13 de fevereiro de 2011

Pedra-memória

- Hoje à tarde escusa de vir. Não vai haver consultas. – Não?! Porquê? - Greve. Os trabalhadores estão em greve e as consultas tiveram de ser desmarcadas a pedido da entidade patronal.
Logo que ouvi esta informação, senti o disparo de um corisco luminoso entre os meus hemisférios, acendendo o desejo de ver uma amada que tenho andado a desprezar há algum tempo. O sol, que queria romper através das cortinas das largas janelas do consultório, acenou, brilhantemente, que sim, que deveria ir. O destino da tarde estava traçado: Buçaco.
Almocei, e ao sair de casa verifiquei que o sol continuava a brilhar, mas à medida que me afastava, reparei que, do lado do ocidente, tinham aparecido, inesperadamente, nuvens carrancudas, escondendo o safado do astro que falta à palavra como se fosse um ser humano. Tantas promessas para nada. Não me importei, porque a mata, com sol, com frio, com chuva, com vento, seja qual for a circunstância, seduz-me sempre. Parei o carro junto do museu, decidido a enfrentar os elementos e andar cerca de quinhentos metros para fazer exercício. Olhei para o lado e vi duas senhoras a conversar no pátio. Apercebi-me de que estava aberto. Durante muitos meses, em 2010, esteve encerrado para obras para a comemoração do bicentenário da batalha. Já o tinha visitado mais do que uma vez, mas foi em tempos, há longos anos. Como era ainda cedo, tive de saciar a minha curiosidade e entrei. Contornei uma pequena estátua equestre, de bronze, do feio D. João VI, mas nem lhe liguei patavina. Já estou farto de o ver, sempre que me sento na sala dos capelos, ou quando tenho de ir à faculdade de medicina do Porto em provas académicas. Adquiri o bilhete, depois de conversar um pouco com a simpática funcionária, que quis saber se era a primeira vez que visitava o museu. Ficou a saber mais do que eu queria que soubesse acerca dos meus hábitos, mas há pessoas que tem o condão de nos dissecar, e eu deixei. Não senti qualquer dor!
A simplicidade do primeiro espaço era mais do que evidente, vitrinas com armas diversas e muitas gravuras da época a ilustrar os feitos de Napoleão, batalhas e personalidades ligadas às invasões francesas. Ao entrar no espaço maior, onde se encontravam muitos e interessantes elementos a recordar a batalha, inclusive uma miniatura à escala, que eu desconhecia, chamou-me a atenção a pedra-memória alusiva à destruição e reconstrução da ponte do rio Criz, ocorridas em 1810 e 1826, respetivamente. Senti um baque, porque não a via há muitos anos. Esta memória, assim como a que se encontra junto da ponte sobre o rio Dão, a relembrar a invasão de Massena, fazem parte do meu imaginário.
Há muitos anos, passava diariamente, e mais do que uma vez, sobre a ponte do rio Dão, mas lembro-me de ter passado apenas duas vezes a pé a ponte do rio Criz, que tinha uma pequenina capela do lado de Santa Comba. Era um local ermo e bastante afastado da minha residência. Em miúdo ouvi histórias fantasmagóricas passadas neste local e que me encheram a cabeça. Associava o local a lobos, ursos, caçadas, desaparecimentos, fantasmas e sei lá o que mais.
A primeira vez que a atravessei a pé foi numa quinta-feira de Ascensão, dia do Buçaquito, o dia mais santo do ano, dia de festa, de convívio, de confraternização com partilha de merendas, dia em que não se podia trabalhar, o dia em que entre as dez e as onze horas, Hora da Ascensão de Nosso Senhor, as folhas de oliveira se dispunham em cruz, e eu, à hora aprazada, corria para o quintal, onde havia uma pequena e jovem oliveira, para ver o fenómeno, mas não via nada. Voltava fulo para a cozinha, protestando, porque as folhas ficavam na mesma. A explicação da minha avó contentava-me: - Não vês que ainda é uma oliveira nova e pequenina? Tem de ser uma mais velha. E como não tinha mais nenhuma à mão convencia-me de que tinha razão. E, para reforçar a convicção nos sinais da santidade do dia, continuava na sua lengalenga: - Já viste, algum passarinho no chão? Fazia um pequeno esforço de memória e respondia: – Não! – Claro! Hoje é o dia em que eles não põem as patinhas no chão, porque é o dia em que Nosso Senhor sobe ao Céu.
Com o tempo, o hábito de merendar e descansar durante a tarde, num pequeno bosque da localidade, foi-se esfumando.
Num dia de quinta-feira feira de Ascensão, da parte da tarde, um dia de calor infernal, andei, com um amigo, cinco quilómetros bem medidos até às Pedras Negras onde as pessoas costumavam comemorar este dia. Chegados ao local não vimos uma única família. Frustrados, por esta falta de respeito à tradição, propus: - Por que é não vamos até Mortágua? Depois apanhamos o comboio de regresso e saímos mesmo em frente das nossas casas. Só temos de descer até o Criz, porque a subida até Mortágua não é tão íngreme como em sentido inverso. Antes de nos pormos a caminho, verificámos, após termos contado as moedas de cinco, dez e vinte e cinco tostões, que tínhamos dinheiro mais do que suficiente para comprar os bilhetes, permitindo, ainda, beber umas laranjadas assim que chegássemos à estação para matar a sede anunciada. Na altura, a distância era consideravelmente superior à atual. Quase três horas de marcha. O pior foi o calor e, ao chegar à ponte do Criz, estremeci com receio. O rio corria entre salgueiros esmagado por uma estranha escuridão, sombras e mais sombras, luzes estranhas afloravam à superfície das águas, acompanhadas de uma brisa muito fresca que me provocou arrepios de frio. Tive receio de olhar para aquele silêncio e procurei a pedra-memória que, exposta ao sol, me aqueceu. Descansei um pouco sentado junto dela. Foi a única forma de aliviar os efeitos das histórias que viviam dentro de mim. Ao olhar para a imponente pedra-memória recordei todos estes momentos, e toquei-lhe. Tive a sensação de que a pedra estava quente como se estivesse ainda a devolver o sol que a aqueceu durante tantos anos, antes das águas da albufeira terem submergido aquele lugar. Passado uns anos, estava em Mortágua, em casa de um amigo a passar férias, quando um grupo de jovens se lembrou de ir a pé até ao Criz tomar banho. Não me agradou, mas fui. Entrei na água precisamente naquele ponto que tinha fixado antes. O rio não tinha areia. O fundo era de lodo. Ao calcá-lo arrepiei-me e para agravar mais a situação nunca tinha sentido uma água tão gelada. Nadei um bocadinho e logo que pude, saí, limpei-me, vesti-me e corri para junto da pedra-memória à procura do seu calor. Acalmei-me. Voltei a tocar a pedra, pela segunda vez, no museu militar onde foi parar. Senti o mesmo calor de sempre.
Calmo, trabalhei com afinco o resto da tarde no Palace Hotel.
Uma bela e quente pedra-memória a revolver-me as memórias.

3 comentários:

  1. Abençoada greve!
    Na próxima Primavera, vou sem falta fazer uma visita à Serra do Buçaco. As descrições feitas pelo caro Professor Massano Cardoso, deveriam obrigatóriamente, ilustrar os folhetos turísticos da zona. São por demais sugestivas!

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  2. Realmente estas descrições valem por muitos livros para os turistas, também hei-de ir ao museu do Buçaco ver a tal pedra- memória!

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  3. Mergulho nestes relatos e de lá não quero sair... Mas tudo o que é belo tem um fim...
    Abraço.

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