segunda-feira, 28 de março de 2011

Comichão

Tenho dificuldade em entender certos comportamentos, mas acredito que o problema seja meu. Desconhecia a existência de um movimento cujo objetivo é obter um certificado de “desbatismo”. Essas pessoas defendem o direito a serem desbatizadas por múltiplas razões, tornaram-se ou foram sempre ateus ou agnósticos, contestam a igreja e, provavelmente, não sei, terão mudado de religião. São os chamados apóstatas. Não me compete julgar esse procedimento, mas não posso deixar de tecer alguns comentários. Para obterem o dito certificado têm de o solicitar ao pároco. Não sei se vão emoldurá-los em gabinetes ou nas salas de visita. Na perspetiva de um cidadão comum, a minha, por exemplo, não consigo vislumbrar qualquer vantagem nesse ato, a não ser o simbolismo de uma rebeldia levada ao extremo. Para desligar-se da igreja presumo que não seja necessária tal atitude. Nem imagino quantos ateus ou agnósticos continuaram na sua senda sem se preocuparem com esse ato, que, afinal, representa para muitos um acontecimento social e familiar incrustado numa tradição de séculos. Ufanos, vangloriam-se dos seus feitos, mostrando os certificados de desvinculação. Fazem-no porque estão, felizmente, numa sociedade livre e sem receio de qualquer retaliação, ao contrário do que lhes poderia acontecer em tempos mais ou menos remotos e, até, mesmo hoje, caso vivessem em estados islamizados, onde a apostasia se paga bem caro, por vezes até com a própria vida.
Congratulo-me, não com o ato de “coragem” em si, porque há várias maneiras de contestar certas ideologias ou doutrinas, mas, pela liberdade que tais gestos significam. Uma liberdade que aprendemos a conquistar e que devemos respeitar. No entanto, o uso da liberdade tem de ser feita com elegância, com sobriedade e não com tiques arrogantes.
A propósito de batismo – já agora informo que não vou, naturalmente, pedir nenhum certificado de desvinculação -, estava sentado ao lado do meu pai, no decurso de uma cerimónia fúnebre, quando me chamou a atenção: - Olha, eu fui batizado naquela pia. Estava lá em baixo. – Pois estava, respondi. E eu também fui. – Pois foste. Quem me batizou foi o padre António. Disse o meu pai. – Olha lá, eu fui batizado por quem? – Também por ele. Afinal fomos os dois batizados pelo mesmo padre. Depois, como lhe é típico, apesar de ir a caminho dos oitenta e oito anos, pôs-se a descrever a minha cerimónia com tal detalhe que só ele consegue imprimir. Sorri e lembrei-me do velho padre, já muito idoso.
Quando ouço o nome deste padre associo-o de imediato às frieiras, flagelo que atacava as orelhas durante o inverno. Graças a ele nunca as cocei, porque se o fizesse poderia maltratá-las e ficar com sequelas.
O padre António tinha umas orelhas volumosas e ratadas. A minha mãe, em pequeno, ralhava-me para as não coçar: - Não coças as orelhas, olha que ficas como o padre António! Sempre que o via, olhava de imediato para elas e, realmente, metiam dó e até assustavam. Eu bem queria coçá-las, a tentação era grande, mas nada, não as tocava, não fosse o diabo tecê-las e ficar como o padre.
Agora, depois de ler a tal notícia com que iniciei este texto, estou convicto de que a comichão que sofria em miúdo era muito superior a qualquer outra. E, na altura, também tinha a liberdade de coçar, felizmente que não fiz, senão...

5 comentários:

  1. «Quando ouço o nome deste padre associo-o de imediato às frieiras...»
    Quando li esta parte do parágrafo, até dei um pulo na cadeira.
    E porquê...?
    Porque li freiras, em lugar de frieiras... antes fosse... abençoadinho padre António. Mas pronto, talvez por não ter sido, lhe sobreviessem as frieiras... quem sabe...

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  2. O nosso Rei D. Afonso III "o Bolonhês", pai de D. Dinis, morreu excomungado.
    Durante o seu reinado, influenciou a nomeação de alguns clérigos e retirou a outros por quem se achou traído, algumas benfeitorias, propriedades e rendas de que auferiam. Esses desaguisados com o clero, valeram-lhe a excomunhão. À hora da morte. O seu confessor e cónego da Sé de Lisboa, tentou, usando de certas artimanhas e servindo-se do estado de debilidade do rei, sacar-lhe a confissão e a redenção, que culminaríam na restituição dos bens da coroa, à igreja.
    Só que, na altura em que o cónego se preparava para lhe ministrar os santos óleos, o Rei soergueu-se e numa voz forte, mandou-o à fava enquanto a ervilha enche, denunciando-lhe as jogadas subreptícias e as traições.
    O Cónego, D.Mateus Martins, nasceu numa vila pertencente ao Concelho de Alenquer...
    Mas, D. Afonso havia sido baptisado, simplesmente, tinha-se incompatibilizado com a igreja, os seus poderes e a sua sede de possuir.
    Talvez o diploma de desbaptisado que alguns desejam, seja também um reflexo desse descrédito, confundido com o significado e sentido do baptismo.
    Talvez...
    ;)
    Mas, não foi este o nosso único rei que andou à porra e à massa com a igreja...

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  3. O D. Afonso fez muito bem, batizado ou não, até podia dar com uma marreta no devido sítio ao tal cónego. E quantos aos outros que se seguiram também podiam levar. Mas oh Bartolomeu, não me diga que os "desbatizados" ainda andam ressabiados com esta história...

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  4. Não sei se estas atitudes poderão estar dependentes de uma moda, se de uma tomada de consciência, mesmo que absurda, caro Professor.
    Onde pretendi chegar no meu comentário, foi à constatação de que estes factos se repetem, por motivos ou causas diferentes mas, sempre visando (em meu entender) o poder religioso, que em muitos aspectos se serve dos dogma para fazer prevalecer a sua supremacia.

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  5. É... o desprezo por qualquer tipo de espiritualidade é a maior marca e o maior erro da longa noite socialista ...
    eu quase caí nesse ...vazio arrogante.

    Acabei de ouvir José Alencar dizendo que Deus só quer o nosso bem ..
    Que diferença para o Portugal de hoje..

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