No dia marcado, e à hora inicialmente prevista, uma hora antes do estabelecido posteriormente, já estava à porta da escola. Cheguei adiantado e bem adiantado. O que fazer? O habitual. Rapo um livro, de uma micro biblioteca itinerante, que me acompanha nas múltiplas andanças a que sou obrigado, e aproveitei para ler algumas páginas e escrevinhar apontamentos para deleite da minha memória, que com a idade se torna mais gulosa.
A data, combinada há algum tempo, tornou-se sagrada. De facto, entrementes, fui solicitado para várias iniciativas, todas rejeitadas. A expectativa de falar para jovens atraiu-me, embora não soubesse o que é que iria dizer ou fazer. Só sabia que se integrava em atividades escolares culturais. Estava sentado no carro, a ler o livro, quando comecei a sentir ansiedade. Mas afinal o que é que vou dizer? Não é que tenha dificuldade em improvisar, mas prefiro coisas bem estruturadas, planeadas e amadurecidas. Parecia uma tela em branco à espera da primeira pincelada ou borrada!
Um ambiente agradável. Jovens caracterizados a rigor, prontos a entrarem em palco para a representação de uma peça de Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno. O anjo (neste caso uma “anja”) convidou-me a sentar entre ela e ele, o diabo. Há muito que não via um diabo tão jovem e tão simpático. Fizeram a minha apresentação e, em seguida, na primeira fila da biblioteca, cada um dos personagens fez a sua apresentação: o fidalgo, o onzeneiro, o sapateiro, o parvo, o frade com a sua Florença e a Brísida Vaz, a alcoviteira. Na segunda fila estavam os restantes personagens.
E agora? Pensei. Como vou começar? Pode ser que alguma alma curiosa faça alguma introdução e dê o mote para uma hora e meia de conversa. Salvou-me o anjo! Olho para o meu lado esquerdo e “vejo-a” a ler uma folha com perguntas. Olho para a direita, e reparo que o diabo tem outra, e todas as personagens das duas primeiras filas também tinham. Que alívio, vão-me fazer perguntas.
Fizeram-me muitas perguntas, cuidadas, algumas provocadoras, enquanto outras permitiram-me viajar no passado a relembrar acontecimentos marcantes da minha vida. Uma sensação estranha, mas agradável, quando começamos a esvaziar a alma e sentir que podemos encher a de outros. E dizer tudo em voz alta! Libertação e sentimento de criatividade dominaram-me por completo. “Obrigaram-me” a contar histórias que nunca tinha contado, e eu gostei. Perguntaram-me muitas coisas, algumas difíceis de responder: como é que lido com a morte, como é que me sinto com a vida, se acreditava em Deus, por que é que critico tanto a sociedade, qual a razão da ironia nos meus escritos, por que é que escrevo, quais os livros que me marcaram mais, qual o tipo social que mais atacava. Nunca na minha vida me fizeram tantas perguntas e nunca senti tanto prazer em responder, além de dar algumas respostas que nunca tinha dado. Eu próprio me ouvi, nalguns assuntos, pela primeira vez, naquele momento com jovens do 9º ano. Perguntaram-me, no decurso do fuzilamento, se iria escrever algo sobre o evento. Disse que, muito provavelmente, iria, embora não soubesse quando. Afinal, já estou a escrever, antes do previsto, porque gostei de estar na peça, acabando, como não poderia deixar de ser, por embarcar na “barca do inferno”. Não foi difícil constatar que as perguntas formuladas foram construídas de acordo com as personagens de Gil Vicente ao meu trajeto e personalidade. Uma adaptação inteligente e hodierna da alegoria na qual acabei por me expor abertamente. Jovens de quinze anos conseguiram propiciar uma oportunidade para me conhecer melhor, ao fim de um moio de vida. Estou-lhes grato, porque passei uma tarde inesquecível e deram-me alento para acreditar no talento e criatividade dos mais jovens.
Os adultos deviam ser, periodicamente, fuzilados culturalmente pelos mais jovens. Aprendíamos.
A data, combinada há algum tempo, tornou-se sagrada. De facto, entrementes, fui solicitado para várias iniciativas, todas rejeitadas. A expectativa de falar para jovens atraiu-me, embora não soubesse o que é que iria dizer ou fazer. Só sabia que se integrava em atividades escolares culturais. Estava sentado no carro, a ler o livro, quando comecei a sentir ansiedade. Mas afinal o que é que vou dizer? Não é que tenha dificuldade em improvisar, mas prefiro coisas bem estruturadas, planeadas e amadurecidas. Parecia uma tela em branco à espera da primeira pincelada ou borrada!
Um ambiente agradável. Jovens caracterizados a rigor, prontos a entrarem em palco para a representação de uma peça de Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno. O anjo (neste caso uma “anja”) convidou-me a sentar entre ela e ele, o diabo. Há muito que não via um diabo tão jovem e tão simpático. Fizeram a minha apresentação e, em seguida, na primeira fila da biblioteca, cada um dos personagens fez a sua apresentação: o fidalgo, o onzeneiro, o sapateiro, o parvo, o frade com a sua Florença e a Brísida Vaz, a alcoviteira. Na segunda fila estavam os restantes personagens.
E agora? Pensei. Como vou começar? Pode ser que alguma alma curiosa faça alguma introdução e dê o mote para uma hora e meia de conversa. Salvou-me o anjo! Olho para o meu lado esquerdo e “vejo-a” a ler uma folha com perguntas. Olho para a direita, e reparo que o diabo tem outra, e todas as personagens das duas primeiras filas também tinham. Que alívio, vão-me fazer perguntas.
Fizeram-me muitas perguntas, cuidadas, algumas provocadoras, enquanto outras permitiram-me viajar no passado a relembrar acontecimentos marcantes da minha vida. Uma sensação estranha, mas agradável, quando começamos a esvaziar a alma e sentir que podemos encher a de outros. E dizer tudo em voz alta! Libertação e sentimento de criatividade dominaram-me por completo. “Obrigaram-me” a contar histórias que nunca tinha contado, e eu gostei. Perguntaram-me muitas coisas, algumas difíceis de responder: como é que lido com a morte, como é que me sinto com a vida, se acreditava em Deus, por que é que critico tanto a sociedade, qual a razão da ironia nos meus escritos, por que é que escrevo, quais os livros que me marcaram mais, qual o tipo social que mais atacava. Nunca na minha vida me fizeram tantas perguntas e nunca senti tanto prazer em responder, além de dar algumas respostas que nunca tinha dado. Eu próprio me ouvi, nalguns assuntos, pela primeira vez, naquele momento com jovens do 9º ano. Perguntaram-me, no decurso do fuzilamento, se iria escrever algo sobre o evento. Disse que, muito provavelmente, iria, embora não soubesse quando. Afinal, já estou a escrever, antes do previsto, porque gostei de estar na peça, acabando, como não poderia deixar de ser, por embarcar na “barca do inferno”. Não foi difícil constatar que as perguntas formuladas foram construídas de acordo com as personagens de Gil Vicente ao meu trajeto e personalidade. Uma adaptação inteligente e hodierna da alegoria na qual acabei por me expor abertamente. Jovens de quinze anos conseguiram propiciar uma oportunidade para me conhecer melhor, ao fim de um moio de vida. Estou-lhes grato, porque passei uma tarde inesquecível e deram-me alento para acreditar no talento e criatividade dos mais jovens.
Os adultos deviam ser, periodicamente, fuzilados culturalmente pelos mais jovens. Aprendíamos.
Concordo. Os adultos também aprendem com as crianças e os adolescentes. Também gosto que me façam perguntas e gosto de ouvir as suas estórias, as suas experiências.
ResponderEliminarE assim nos mantemos jovens.... : )
Deve ter sido uma sessão bem interessante e de grande proveito mútuo, aposto que esses jovens nunca mais se vão esquecer do Auto da Barca do Inferno e do teste à sua arte de fazer falar um adulto que não se exime ao interrogatório
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