domingo, 20 de março de 2011

“silêncio é o sangue cuja carne canta”

Na primeira vez em que fui interpelado na qualidade de escritor, o que para mim foi uma novidade perturbadora, porque não me sinto como tal, talvez, no máximo, um escrevinhador, um dos miúdos, que fazia parte do elenco do Auto da Barca do Inferno, perguntou-me por que é que falo tanto da morte? Respondi-lhe, sem hesitação: - Porque tenho medo! E tenho. Continuei a explanar que, desde muito cedo, comecei a conviver com ela. E passei a contar muitos casos em que a vi. Pareciam relâmpagos numa noite de tempestade. Constituem as lembranças mais poderosas que possuo. Começaram a nascer por volta dos cinco anos. Tantas, meu Deus! A minha melhor amiga, que tinha a mesma idade, deitada, sem dizer nada, cor de cera. Toquei-lhe e não respondeu. A mão que tantas vezes peguei estava fria. Guardo a sua imagem. Um tio velho, contador de histórias, fumador de cigarros feitos com barba de milho, a quem ouvi o último suspiro. Alguns anjinhos, desconhecidos, sem nome, sem batismo, que os mais novos, diligentemente, levavam ao cemitério sem os tradicionais ritos fúnebres, conferindo um ar infantilmente despreocupado como se fosse a coisa mais natural do mundo. Depois, muitos mais, à medida que os anos se iam acumulando. Contei-lhes alguns casos na qualidade de médico que me marcaram para sempre e com os quais se aprende às vezes mais num estertor do que em muitas horas de estudo ou anos de vida. E falei, falei sempre e os miúdos ouviam com interesse, sem anseios como se estivessem a imaginar as cenas. Apercebi-me que lhes estava a fazer bem.
Falar da morte com naturalidade não perturba, não traumatiza, ajuda a aliviar certos anseios, dando à vida um outro significado. Os seus olhares, serenos, cheios de atenção foram os responsáveis pela majestática tempestade sobre este tema. Não ficaram assustados. No final, depois de muitas outras perguntas, o “anjo”, que estava ao meu lado esquerdo, perguntou-me qual foi a maior experiência que tive como médico até hoje. Foi então que eu soube qual tinha sido. Até aquele momento desconhecia por completo. O “anjo” perguntou-me e eu lembrei-me de um anjo desconhecido, pequenino, com poucos dias de vida, que, a meio da noite, na primeira vez que fiz urgências, praticamente sozinho com mais três colegas, cem por cento inexperientes nestas andanças, entrou ao colo da mãe na sala do banco. Vi uma senhora, nova, simples, ar triste, que me colocou nas mãos o filho, porque estava doente e não respirava. Recebi-o, olhei-o e vi um anjo com fácies azulada. Toquei-lhe e confirmei o que os olhos já tinham previsto. Não tinha sinais de vida. A mãe olhou-me e vi um derradeiro apelo para que lhe reativasse o sopro da vida. Defraudei-lhe a esperança e, gentilmente, coloquei-o nos seus braços, cobri-o com a mantinha e disse-lhe para o levar. Foi-se embora. Os meus colegas que estavam a passar pelas brasas perguntaram-me o que é que se estava a passar. Nada, respondi. Depois conto. Nunca lhes contei.
Agora, numa madrugada, em que a passarada costuma já estar desperta e agitada para iniciar um novo dia, não a ouvi. A morte ensurdeceu-me com o seu silêncio. Mais uma vez vi, toquei, senti e vivi a morte, mas sem qualquer receio. Quando estou a seu lado fico, estranhamente, tranquilo e sou invadido por uma onda de paz. Passadas poucas horas recebi uma mensagem, um poema de Cummings: “penetra nenhum (silêncio é o sangue cuja carne canta) silêncio: que não seja canto. Em espetral tão vasta esta quietude, uma folha morta movendo-se é um clamor”.
Um dia hei de deixar de ter medo da morte...

1 comentário:

  1. Um dia, disse-me um velhinho que conheci; só a morte dá sentido à vida!
    No momento não percebi, achei até que era coisa de velhos... a morte dar sentido à vida...
    Na verdade, nunca me esqueci daquela frase e, mais tarde, comecei a reflectir sobre ela e comecei a perceber que são inumeras as coisas que fazemos bem feitas, porque temos medo da morte.
    No entanto, a conclusão mais pertinente a que cheguei e a mais evidente, tem a ver com espaço.
    Imagine-se que a morte não existia... teria então de não existir, forçosamente o nascimento de vida, teria que deixar de haver procriação, ou então... a Terra teria de aumentar de tamanho todos os anos e neste momento, seria já um planeta do tamanho da galáxia.
    É duro ver partir os amigos, os familiares, os conhecidos. É duro saber da ocorrência de catástrofes, de guerras, de acidentes, que vitímam um sem-número de pessoas. É triste, porque somos dotados de capacidade de amar o nosso semelhante. Talvez a morte seja uma forma suprema de amor, que permite a continuidade da vida... talvez, só a morte dê sentido à vida... talvez.
    ;)

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