Foi nesta altura do ano. Estava sentado junto à janela da sala de aula a desenhar, ou a fingir que desenhava, porque, se não me engano, devo ter terminado a minha escalada nesta deliciosa arte pelos quatro anos. Os desenhos, feios, despropositados e com fortes traços infantis, incomodavam-me sobremaneira. Desenho livre era um tormento. Como passar a imagem de um objeto para o papel? Eu bem tentava e fazia um esforço dos diabos, chegando a ponto de me interrogar por que razão não herdei dez gramas do talento de uma avó, que nunca conheci, mas cuja presença me enchia de prazer e de alegria, sempre que olhava para os seus quadros. Diz o povo que quem sai aos seus não degenera. Não degenera? Claro que degenera, e eu era uma prova mais do que evidente. Nesse dia tínhamos de fazer um desenho geométrico, o que para mim era mais fácil, já que a régua alinhava bem os traços e o compasso fazia o resto. Não ficavam tortos. O professor ensinou-nos a fazer um galo de Barcelos com base na geometria. E como adorava geometria não me foi difícil criar um galo cujas proporções eram livres. Depois tive que o decorar, utilizando múltiplas formas geométricas que iam aparecendo nos espaços vizinhos. Triângulos, semicírculos e arabescos de vários tipos povoavam o pescoço, corpo e até a cauda. Desenhava sem qualquer esforço olhando para o vale do rio que se espraiava preguiçosamente ao longe. Um dia quente, primaveril, transparente, com pequeninas partículas a bailar no ar, contentes por serem portadoras da vida. E o cheiro! Um cheiro único, cheiro a primavera, que se elevava do fundo do vale empurrado pela frescura das águas que, ao dissolver uma multiplicidade de fragrâncias, conseguia fazer cócegas no nariz e convidava a correrias frenéticas pela calçada que me separava da ponte e da outra margem. E eu ali preso, agarrado ao galo. As tintas iam preenchendo os espaços, como que por acaso, sem pensar, talvez fruto das imagens e das cores que ia descobrindo na paisagem. Desenhava e pintava sem dar grande importância ao que estava a fazer, o que eu queria, mesmo, era ir para a rua, para a ponte, agarrar os cheiros, sentir o calor da tarde e viver aquele momento, um momento que sempre soube que nunca iria esquecer, esperando que todos os anos pudesse testemunhar o seu nascimento. Nascimento? Isso. Era o nascer de um novo período, porque nos dias anteriores não houve nada semelhante. E o desenho ia tomando forma e conteúdo. Acabou a aula. Olhei para o desenho e fiquei surpreendido com o que tinha feito. Nem queria acreditar no que estava a ver. Um lindo e colorido galo, harmonioso, que me emocionou. Levantei-me e entreguei-o ao professor para que o classificasse. Olhou-o durante alguns instantes e, no fim, deu-me os parabéns. Com a sua esferográfica Bic, e a vermelho, atribuiu a classificação, rubricando no canto superior direito, Muito Bom. Muito Bom? Foi a única vez que tirei uma nota destas a desenho. Quanto tirava um suficiente já ficava contente, porque na maioria das vezes levava com suficiente menos, classificação mais do que simpática, que evitava conflitos com as restantes notas das outras disciplinas. Já estava feliz por poder assistir ao parto da natureza e, ao receber uma classificação desta natureza, senti, também, que uma primavera nascia dentro de mim, no mesmo dia, e corri, corri loucamente com o meu galo de Barcelos na mão acenando a tudo e a todos que encontrava no caminho. Uma tarde única que me inebriou os sentidos e a alma, um raro momento em que foi possível nascer e ver nascer...
Caro Professor Massano Cardoso
ResponderEliminarNão há dúvida que a natureza é muito inspiradora. Alimenta-nos os talentos. Afinal valeu a pena desenhar o Galo de Barcelos apesar da natureza lá fora chamar ao recreio. Não ficou tudo perdido, afinal a Primavera pintou de lindas cores os desenhos do pequeno Salvador...
Estava agora a olhar aqui para a mensagem abaixo que diz " Um campo obrigatório não pode ficar em branco" . Um como é? Não pode? Então que me multem...
ResponderEliminarÁs vezes uma pessoa chega a um grau de saturação tal, é de tal forma insultada, ignorada, gozada,.. que simplesmente não se pode mais.
E mais não digo. Boa noite Professor Massano, daqui da terra do queijo ( pessoalmente prefiro de mistura).
Nada como um dia bonito para iluminar boas recordações.
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