sábado, 25 de junho de 2011

Decadência

Mergulhar no meio de velharias é uma mania como outra qualquer. Quando tenho oportunidade, uns trocos de tempo, penso gastá-los numa livraria, num alfarrabista ou numa loja de trastes velhos ou fora de uso. Trocos em troca de algo, muitas vezes considerado como lixo. Como já me disseram que tenho o hábito de trazer “lixo” para casa, ainda vou acabar por equacionar, academicamente, a hipótese de poder estar a mostrar indícios de síndrome de Diógenes!
Há uns meses visitei um velhustro e não encontrei nada de especial. O dono, que já me conhecia, disse-me: - Tenho uns desenhos numa pasta. Quer vê-los? – Pode ser. Abri a pasta cheia de pó e sujidade e deparei-me com muitos desenhos, rabiscos, muitos inacabados, outros não passavam de esboços, um ou outro completo, mas a maioria assinados, A. Caseiro. Alguns dos desenhos perturbaram-me, fortes, agressivos, revelando facetas que só um artista com alguma genialidade pode imprimir. Selecionei alguns, poucos, os melhores, e perguntei quanto queria por eles. – Leve-os todos! Disse-me, como se quisesse desfazer daquelas folhas, cheias de pó e com desenhos esquisitos. – Leve tudo. São vinte e cinco euros! Não regateei, aliás, não tenho esse hábito. Paguei. Mais tarde, calmamente, analisei-os com algum cuidado; tinham valor artístico, sem dúvida. Tinham sido desenhados na primeira metade dos anos sessenta. – Este autor deve ter obra consagrada, pensei. Comecei a pesquisar, mas nada. Encontrei muitos Caseiros, mas nenhum com perfil de pintor. Consegui uma breve referência, de relance, a um Caseiro, num pequeno parágrafo de um texto autobiográfico de um artista plástico, em que o autor o descreve como uma grande promessa nas artes do desenho, da escrita e da música, mas que, infelizmente, nunca chegou a concretizar os seus talentos. Telefonei, no dia seguinte, para alguns “Caseiros” da região. Uns atrás de outros desconheciam qualquer familiar com tamanhos atributos, chegando a propor contactos com donos do mesmo apelido em terras vizinhas, mas sem sucesso. Ao fim de alguns dias, o efeito tempo obriga-nos a esquecer as nossas paixões e curiosidades, remeti os desenhos para o meio de uma pasta mais larga, onde jazem coisas parecidas.
Esta semana, houve um dia em que o tempo teve a gentileza de não me absorver totalmente. Aproveitei os restos e, sem convicção, rumei até à loja de velharias, não para procurar, mas para ser procurado por qualquer coisa que quisesse cair em minhas mãos. Entrei, dei rapidamente uma volta, contra as habituais três, e ia já a sair quando o senhor anunciou: - Quer ver uns desenhos? Tenho-os ali. Guardei-os para si. – Gentileza a sua. Abri a pasta que continha muitos desenhos e verifiquei, surpreendido, que eram semelhantes aos anteriores. De facto a grande maioria estava assinado com A. Caseiro. Negociei os desenhos, tendo regateado pela primeira vez na minha vida, acabando por “impor” o meu valor, o que me soube bem! O senhor queria desta vez um valor substancial. Um pouco mais tarde, refastelado numa esplanada, deliciei-me com as obras as quais me obrigaram, novamente, a querer saber um pouco mais sobre o artista. Lembrei-me do tal curto parágrafo da pesquisa anterior, identifiquei o autor, consegui o e-mail e, em seguida, enviei-lhe uma mensagem explicando o que tinha em mãos e o desejo de esclarecer a personalidade do autor. Duas horas depois recebi a resposta do pintor, que tinha sido companheiro e amigo na adolescência, inundando-me de informações preciosas. Chamou-me a atenção o facto de se tratar de uma personalidade exuberante, profundamente hedonista e incapaz de concretizar o que quer que fosse. Nunca conseguiu ter um rumo na sua vida, acabando por ficar sozinho, terminando os seus dias numa casa de repouso em total decadência. O apetite em conhecer tamanha personalidade levou-me, no dia seguinte, até à Lousã, onde o velho companheiro viu, analisou e comentou os desenhos, além de me ter propiciado uma das mais belas tardes culturais dos últimos tempos. Prometeu-me enviar alguns textos escritos de tão singular pessoa quando era jovem. Aguardo-os. No final da tarde do feriado fiquei com a vaga sensação de que o senhor teria alguma genialidade afogada numa decadência anunciada.
O “lixo” esconde, por vezes, beleza, arte, dramas, emoções e sentimentos capazes de nos enriquecer de forma inesperada. O lixo nem sempre é sinal de decadência. Tenho pena de que este autor a tenha preferido privando-nos de belezas anunciadas que, decerto, nos fariam mais felizes.

3 comentários:

  1. a arte nao deve ser procurada mas sim econtrada

    Bjinhos
    Paula

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  2. Peço-lhe desculpa, caro Professor Massano Cardoso, porque discordo quando escreve neste (mais um) precioso texto "onde jazem coisas parecidas".
    Essas "coisas" que tão ciosamente guarda - talvez porque lhes respeita a vontade de o terem escolhido para as fazer tornar à vida - podem estar deitadas, mas não estão mortas e sobretudo, não estão sepultadas.
    E à semelhança d'aquilo que nos contou em outras ocasiões, estou certo que tudo fará para que estes desenhos conheçam, senão totalmente, pelo menos em parte o "brilho" que lhes era devido, se o acaso não tivesse remetido o seu autor para o anonimato.
    Acontece infelizmente a muitos que possuem mérito, intrometer-se um pequeno grão de areia, atrevido, que emperra a engrenagem, aquela que dita o tempo certo, o timming, como dizem os ingleses.

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