Não é fácil ser-se surpreendido ao fim de muitos anos de atividade profissional, mas ainda vai acontecendo e quando menos se espera. Vejo doentes em fases ditas terminais com todo o cortejo de sinais e sintomas de degeneração, os quais me incomodam sobremaneira, levando-me a equacionar muitas interrogações para as quais não consigo encontrar respostas, e as que ouço, sinceramente, mais valia que os seus autores estivessem calados, porque a par da ignorância adicionam arrogância. Recebi um telefonema a perguntar se não me importava de ir ver um velho doente, no duplo sentido do termo. - Claro que vou. Uma resposta acompanhada de alguma angústia despertada pela sucessão de recordações, entre as quais as últimas, quando o seu estado, bastante deteriorado, física e mentalmente, não prenunciava nada de bom. Tinha feito várias tentativas no sentido de corrigir algumas perturbações, há já algum tempo, mas não vislumbrava os resultados esperados, ou, melhor, desejados. Não questionei sobre o seu estado atual ou as razões para o pedido de visita, tinha tempo mais do que suficiente para ver in loco ao final da tarde. E foi o que aconteceu. Ao aproximar-me da residência comecei a exercitar a memória e a estratégia a seguir, mesmo sem o ter examinado. Velho, doente e incapacitado, uma tríade diabólica em que tropeço amiúde e que me deprime. O que é que poderei fazer? O sol, que hoje estava bastante simpático, fazia esforços para me alegrar, mas não conseguia, apenas me acalmou o suficiente para que esquecesse a minha angústia. Subo as escadas e estranhei que o corvo não começasse a crocitar. Vive há muitos anos debaixo das escadas, transformada em gaiola, e é um excelente animal de guarda. Não o ouvi e nem o vi. Subi as escadas a pensar que o animal deveria ter morrido. Que pena, morre tudo. Ao chegar ao cimo fui saudado pela filha e, por detrás, sentado num mocho à entrada para a cozinha, estava o senhor X. Não esperava que estivesse ali, com um ar bonacheirão, sorriso malandro e cheio de carnes. A imagem que estava à espera era deitado no sofá, boca aberta, olhar no vazio, corpo rígido, sem dizer coisa com coisa e com a saliva a escorrer pelo canto da boca. Qual quê! Estava ali, sentado, na posse de todas as suas faculdades mentais, prolixo, satisfeito por se mostrar que estava em forma, embora estivesse preocupado com a sua saúde. A filha disse-me que andava com medo de morrer. - Ai anda? Bom sinal! - Viva senhor X., o senhor está com um aspeto formidável! Nem quero acreditar. - Foram aqueles dois medicamentos que o senhor doutor lhe deu. Interveio a filha. - Ele anda, anda sozinho e muitas vezes sem a bengala. Vai até ao quintal e tudo. Enquanto a filha ia debitando o sucesso da sua recuperação, o senhor X, inchado de satisfação, fixava-me com um sorriso irónico, um sorriso destilado ao longo de décadas e décadas de vida bem recheada de experiências e de histórias que mereciam ser contadas. Dotado de uma capacidade argumentativa muito difícil de rebater, apesar de não ter formação escolar, obrigou-me, desde sempre, a um cuidado redobrado na forma como lidar com ele. Ai de mim se lhe desse pretexto para contra-argumentar, desfazia-me com uma lógica terrível, embora não lhe assistisse a razão. Depressa aprendi esta sua qualidade para me impor e fazer com que aceitasse os meus conselhos e determinações. - Enquanto se ia desenrolando estas cenas, o corvo lembrou-se de começar a crocitar. - Afinal está vivo. Ainda bem. Mas por que razão estará a crocitar? Olhei para baixo e vi um gato preto. Ah! Está explicado. O corvo tem raiva a gatos pretos e se pudesse decerto que lhe arrancaria os olhos. - Bom, este final de tarde está a correr melhor do que esperava, o sol está simpático, o corvo está vivo e o senhor X está em forma. Levantou-se com uma agilidade surpreendente e fomos para o sofá. Direito, sem ajuda, sentou-se e disse-me que andava preocupado com aqueles "ais" que lhe vem lá do fundo, suspiros que não consegue controlar. - Preciso de arrotar, para ver se isto sai. Arranje-me qualquer coisa para deixar de suspirar. Expliquei-lhe que não era sinal de perigo, às tantas eram saudades de outros tempos, das raparigas... - Olhou-me com um sorriso muito malicioso, dizendo: - Acha que sim? Era bom, era! Fui obrigado a admitir que as suas capacidades estavam a funcionar bem. Um pequeno teste, fácil de aplicar. - Mas esta coisa da barriga, parece que estou empanturrado, chateia-me. É nas voltas de Lua que isto me dá. - Ai sim? Então, eu vou-lhe dar um medicamento para tomar quando se sentir empanturrado nas mudanças de Lua. - Está bem! A conversa continuou ao redor de outros assuntos e pude ver que o senhor estava muito melhor. Até quando não sei. O senhor X. estava feliz e ficou melhor depois da visita. Eu também fiquei feliz.
Quando saí o velho corvo de guarda não grasnou.
Ha dias, enquanto conduzia, escutei no rádio uma entrevista dada pelo Professor João Lobo Antunes.
ResponderEliminarPáginas tantas, o entrevistador observou ao entrevistado que durante a sua carreira, certamente já se teria defrontado com casos de imensa complexidade, e questionou-o; se se recordava de algum milagre que tivesse operado. (Isto porque anteriormente o Professor confessou que em criança, sonhara ser santo.)
Após breves momentos de pausa, veio a resposta esperada; Que não. Quanto muito, teria participado na realização de alguns.
A uma orquestra, onde tocam corvos, gatos, comprimidos, a malandrice do velho e o carinho da filha, não lhe parece que faz falta a batuta do médico?!
É que se não... aquilo ia resultar numa cacofonia que ninguém se entendia.
;))))
Até os corvos gostam do Professor!...
ResponderEliminarAbraço
Se trocasse velho por idoso,isto era uma pequena pérola.Cumprimentos.
ResponderEliminarPronto! Logo tinha de aparecer um cachimbo "afectado dos termos"...
ResponderEliminarBah!!!
;))))
Um idoso que receia o pior e um corvo que deixou de cricitar seria para Shakespeare um mau presságio! O próprio fez inúmeras menções ao corvo como ave mau-agourenta: acreditava-se que o esvoaçar crocitante de corvos sobre alguma casa onde houvesse alguém doente, sobretudo ao entardecer, era sinal de morte iminente. Esse misterioso relacionamento com a morte decorre do facto de a presença de corvos no céu indicarem, aos caçadores, a proximidade de carniça. Mas neste caso concreto, tudo é diferente! Um dia soalheiro, um idoso com saúde que baste, um corvo que não gosta de gatos pretos e um gato preto que certamente não se importaria da cor do corvo, na hora de se saciar! O que diria Shakespeare neste caso?
ResponderEliminarCorrigenda: Substituo cricitar por crocitar. Manias de um velho teclado. Ou será melhor dizer: "...de um idoso teclado."?
ResponderEliminarCaro Luis Rosário, insignis autor de um "manuscriptus" interrompido; será que Shakespear, escreveria:
ResponderEliminar«To be, or not to be - black -: that is the question:
Whether 'tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles»?!
;)
To be or not to be? Just be!
ResponderEliminarTo do is to be and to be is to do!
Do be do be do! ;)