É dona de um sorriso sereno e consegue transformá-lo num encanto quando termina as curtas frases, enchendo-o de timidez, de alegria, de dúvidas, de muitas interrogações e poucas exclamações. E o timbre? Suave, doce e sem arestas. Conheço alguma coisa da sua vida. Nos últimos tempos, um revés familiar esfacelou-lhe a alma. Sofre, intensamente. A dor obriga-a a falar. Calo-me, ouço e sinto que é a altura em que o tempo desaparece, não o sinto. Conta-me o sucedido, não de forma chorosa, mas através de algumas reflexões e interrogações. Delicada, manifesta amiúde preocupação em estar a roubar-me o tempo. Informo-a, através de monossílabos, ou de alguns gestos, de que não está, que pode e deve continuar a falar, com receio de que perca o raciocínio e análise. A morte da nora, ocorrida pouco tempo após diagnóstico de doença maligna, apanhou-a de surpresa, provocando-lhe um mal-estar e uma sensação de perda que se mantém. Não conheci a familiar, mas seria decerto alguém muito especial em termos de caráter, de ação e em beleza. Sintetizo desta forma as longas conversas que vamos mantendo desde a altura em que soube que estava doente, e já passou algum tempo. O que me incomoda é não conseguir dar resposta às suas interrogações, de alguém que já viu e sentiu o que era a morte. Viveu a morte dos pais, de irmãos, de sobrinhos, de uma neta, precisamente a filha da nora, de muitos familiares, de colegas, de amigos, enumerou-os às carradas. Ao terminar o parágrafo de obituária, sorriu, como que dizendo: não poderia ser de outra maneira, não é verdade senhor doutor? O que é que se pode esperar de alguém que já chegou aos 91 anos? Diz a minha amiga que não consegue compreender as razões para este sentimento de perda, apesar de ter tido muitas vivências com a morte. Não consigo perceber por que é que eu sinto isto. Já passei por tantos casos! Eu sei que estou perto de ir, não me preocupo muito, tem de ser, mas não consigo entender porque é que a G. desapareceu. Não consigo! O seu sorriso intensificou-se, ligeiramente, como sentisse vergonha de estar a confidenciar algo muito pessoal. Eu acredito que há qualquer coisa do lado de lá, que a vida não se restringe apenas àquilo que nós vemos e nos rodeia. Acredito que há alguém que tenha criado o mundo, as pessoas, as estações do ano, bem é certo que as estações já não são o que eram, riu-se, ao ter consciência da irregularidade temporal. Eu acredito que vou encontrá-la e que deverá estar bem. Neste momento, o seu belo sorriso encheu-se de alguma inquietação e interpelou-me, não acha que é assim senhor doutor? Confesso que não estava à espera da pergunta. Respondi-lhe que estas matérias são do foro pessoal e que as crenças são merecedoras do maior respeito. Senti que não a defraudei, porque continuou com algumas descrições de passagens pessoais, continuando a dizer que não percebia porque é que continuava ao fim de tantos meses após o passamento a sentir estas coisas, embora esteja muito melhor. Agora ela está no sarcófago com a filha ao lado, mas em cinzas. Sabe, também não consigo entender, nem sei bem como foi feito, a cremação. Custa-me tanto imaginar a entrar no forno com aquela cara tão bela a ser destruída pelo fogo e agora ali em cinzas... E eu para aqui a roubar-lhe o tempo, senhor doutor. Não rouba nada. Sabe, sinto-me melhor depois de falar consigo. Também eu! Pensei. Em seguida, formalizei o receituário, expliquei-lhe a inocuidade de alguns sintomas e acompanhei-a ao longo do corredor, prolongando a conversa com coisas circunstanciais e cogitando quanto tempo restará para podermos conviver desta forma. Senti uma estranha angústia, uma sensação de perda. Premonição?
Não sei porquê, mas acabei por associar esta conversa com um artigo sobre Derek Parfit, um filósofo que explica que o egoísmo racional pode ser transformado em altruísmo universal. No fundo pretende ensinar como é possível ser-se bom. Tudo passa pelo facto da identidade pessoal se transformar ao longo do tempo, acabando por sermos diferentes daquilo que éramos no passado, logo, todo o investimento com o objetivo de beneficiar o que viermos a ser no futuro, à custa de sacrifícios no presente, não é mais relevante do que o investimento que se faça no presente em relação a outros. A síntese doutrinária, de tão ilustre pensador, talvez explique as razões da "incompreensão" da minha doente, é que a sua identidade é diferente do que era, e ela não sabe, mas também não lhe disse. A minha identidade, com toda a certeza, está a transformar-se e a minha amiga tem a sua quota-parte, nada pequena...
Não sei porquê, mas acabei por associar esta conversa com um artigo sobre Derek Parfit, um filósofo que explica que o egoísmo racional pode ser transformado em altruísmo universal. No fundo pretende ensinar como é possível ser-se bom. Tudo passa pelo facto da identidade pessoal se transformar ao longo do tempo, acabando por sermos diferentes daquilo que éramos no passado, logo, todo o investimento com o objetivo de beneficiar o que viermos a ser no futuro, à custa de sacrifícios no presente, não é mais relevante do que o investimento que se faça no presente em relação a outros. A síntese doutrinária, de tão ilustre pensador, talvez explique as razões da "incompreensão" da minha doente, é que a sua identidade é diferente do que era, e ela não sabe, mas também não lhe disse. A minha identidade, com toda a certeza, está a transformar-se e a minha amiga tem a sua quota-parte, nada pequena...
A "sua" esperança e o "seu" pressentimento nos dão asas. Muito Obrigado!
ResponderEliminarNunca alinhei por aquele princípio religioso de praticar o bem, com vista a garantir um lugar de 1ª fila no paraíso.
ResponderEliminarAliás, sempre achei que não praticar o mal, é já uma boa forma de praticar o bem.
Mas, praticar o bem com abnegação, confere ao seu "autor" a satisfação de estar a contrubuir para a sustentação do equilíbrio universal. E esta, quanto mais abrangente se tornar, mais felizes serão os seres humanos.
Aliás, penso que foi esta a mensagem que aquele rapaz da Galileia, tentou explicar-nos.
Mas acho ainda que é importante também, não praticar o bem, como forma de atingir uma medida que se impõe completar diáriamente. Uma coisa do género daquilo que é imprimido às crianças escoteiras "deves praticar todos os dias 5 boas acções" ajudar uma velhinha a atravessar a rua é por exemplo uma das boas acções preconizadas. Quando os meus filhos me vieram com "essa", disse-lhes: antes de ajudarem a velhinha, certifiquem-se se a velhinha está a necessitar de ajuda e se quer aceitar a ajuda e ainda se ao lado da velhinha, não se encontra um invisual, por exemplo.
(Já agora, e atítulo de curiosidade; quando nos referimos a alguém de idade avançada, mencionamos invariávelmente "velhinha" e quando se trata de alguém sem vista, escolhemos sempre o "ceguinho". Isto hà coisas...)
Texto lindo, Senhor Professor, como de costume. Muito obrigada. Nestes meus dias tristes, ler o que escreve tem-me ajudado muito. E hoje, a propósito deste texto, lembrei-me de uma ideia que me acompanha há muito. Foi deixada por Victor Hugo ao filho: " Ser inteligente é ser bom, e ser bom é tudo"
ResponderEliminar"Roubei-a" e sei que já a "deixei" ao meu filho.
Caro Professor Massano Cardoso
ResponderEliminarAo ler esta história de vida lembrei-me da minha Avó materna que partiu com quase cem anos. Também ela viu partir pela ordem inversa da vida alguns dos seus. Dizia a minha Avó que com o avançar da idade, a caminho de outra vida, as saudades dos que tinham partido, fazia cada vez mais tempo, eram cada vez maiores. E já sentia saudades dos filhos, netos e bisnetos vivos. Dava graças a Deus pela vida longa. O tempo é um grande transformador. Com mais tempo, mais coisas acontecem…