sábado, 10 de setembro de 2011

Sempre as escolhas difíceis

Vem crescendo a discussão sobre a facilidade com que pessoas que assumiram altos cargos na administração pública se “passam” para o sector privado, levando com eles não só o conhecimento de situações e estratégias como também uma rede de contactos que os transforma em apetitosas mais valias para o novo empregador. Há também as perplexidades crescentes sobre a generalizada confusão entre interesses públicos e privados e a dificuldade em preservar a comunicação entre uns e outros. As leis sobre incompatibilidades, impedimentos e compensações são um emaranhado total de remendos, revogações e regras de ocasião. O facto é que ninguém se preocupou com isso quando se pôs em causa o estatuto dos funcionários públicos com tudo o que ele significava de garantias para o “empregador”, ficou tudo concentrado em avaliar as “mordomias”, as “garantias” e o inexpugnável centro de decisão no sector público. Poucos se lembram de que o famoso “regime da função pública”, por exemplo, se foi tornando erradamente numa apropriação de “direitos e garantias” dos funcionários, esquecendo-se a fortissima e imprescindível componente de “dever público”, contrapartida de lealdade, isenção, independência e exlusividade, que incluia um estatuto disciplinar muito mais exigente do que as regras gerais da lei laboral. O direito à carreira, a impossibilidade de despedimento unilateral, a protecção na doença, incluindo da família, e o direito à reforma com base no salário auferido, eram determinadas pela necessidade de garantir as condições específicas de retenção dos quadros com os ónus próprios da função. Em muitos sectores, a administração pública era uma escola de formação técnica e profissional e esse investimento era compensado pela quase garantia de que seria o sector público a beneficiar dessa formação, pela permanência das pessoas e, por isso mesmo, o sector público foi, em muitos segmentos, um símbolo de prestígio e qualidade.Um funcionário público não teria, assim, quando agia ou decidia, que preocupar-se em agradar aos seus potenciais futuros empregadores quando se visse posto na rua de um dia para o outro, não teria que corromper-se para arrecadar uns dinheiros para quando fosse velho, nem teria que arranjar um duplo emprego para pagar as despesas de saúde. Em contrapartida, também os seus salários seria moderados, pouco competitivos com o sector privado, mas largamente compensados pela segurança no emprego, desde que cumpridas as regras da profissão, e pela certeza de que um nível de vida decente estaria sempre assegurado. Um funcionário que violasse gravemente os seus deveres era pura e simplesmente demitido ou aposentado compulsivamente, e isso era uma terrível punição não só pessoal como também social. Quando tudo passou a ser reclamado como “direitos” e, por outro lado, passou a ser visto como “privilégios”, perdeu-se por completo o sentido útil das coisas. Quando se contestam, e se eliminam, as compensações do exercício de cargos que teriam especiais exigências de isenção e de renúncia ao livre trânsito entre empregos, temos que esperar que tudo o resto mude também, o sector público emparceira com o sector privado e as regras passam a ser as mesmas.Talvez fosse inevitável, não sei. E não estou aqui a justificar comportamentos eventualmente abusivos e totalmente falhos de ética que deviam, acima de tudo, estar associados ao carácter de cada um dos escolhidos para cada missão. Mas, onde antes havia ónus, estímulos e consequências, hoje há apenas isso mesmo, o critério de cada um. A mercantilização do trabalho na administração pública só muito dificilmente pode ser compensada apenas por regras de proibição para dissuadir a “concorrência”. É compreensível e inevitável que se ponham em causa “sistemas” que se tornaram incomportáveis e que sofreram sucessivas distorções, até se tornarem quase irreconhecíveis, mas é também indispensável que se perceba o que é que, no seu lugar, está a surgir, e porquê. Temos que aprender a escolher e a arcar com as consequências, para isso é importante que se saiba exactamente o que é que cada escolha nos traz e do que é que nos priva, e se estamos dispostos a pagar esse preço.

5 comentários:

  1. Compreende-se que no texto, a cara Drª Suzana, se refere a funcionários públicos de nível superior, porque nos níveis inferiores, o funcionário público não tem opção de escolha, até porque o trânsito para uma entidade privada, é impossível, na medida em que existe um estígma que rotula todo o funcionério público de incompetente, mandrião, etc.
    E ainda;
    Já tomou a cara Drª conhecimento, do almoço-tertúlia-quartarepublicano que irá ter lugar na próxima sexta-feira, no restaurante O Fuso, em Arruda dos Vinhos?

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  2. Uma análise muito interessante e que poderá explicar alguns dos desvios que se observam hoje em dia. Nunca me tinha passado pela cabeça esta forma de analisar o estatuto de funcionário público, e apesar de alguns comentários mais ou menos discordantes, que podem surgir, há aqui matéria para debater o assunto, evitando a crescente "promiscuidade" entre o público e o privado.

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  3. Suzana
    As transformações operadas na função pública nem sempre terão sido objecto de opções plenamente conscientes das suas consequências. Tenho para mim, como aliás aconteceu em outras realidades económicas e sociais, que as escolhas, rejeições e omissões foram sendo feitas ao longo do tempo sem ter pela frente objectivos avaliados e bem estabelecidos. Na função pública observámos até avanços e recuos, incoerências diversas em substância e no tempo. É compreensível que se ponham em causa "sistemas", mas já tenho dificuldade em aceitar que seja feito de forma desorganizada sem um caminho claro a seguir. Até porque reformar "sistemas" implica tempo, programação, transição, mas sobretudo estabilidade e previsibilidade.

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  4. Caro Bartolomeu, esse "estigma", como lhe chama, faz parte do processo de desconsideração do que era o poder público. No entanto, como deverá reparar, as pessoas não deixam de contar que esses funcionários exerçam com competência e com lisura as suas funções, e fazem muito bem em exigi-lo, isso significa que contam com as pessoas e com as suas capacidades. Infelizmente, muitos funcionários encontam-se a essa desconsideração para se desculparem com menos empenho, uma coisa acarreta a outra neste círculo vicioso.
    Caro Massano Cardoso, em geral é isso que falta, um pouco de reflexão sobre o sentido das coisas, em vez de desatarmos a mudar tudo o que "parece" sem nos preocurparmos em saber o que, de facto é. E aprendemos todos a exigir sem dar em troca, a pensar que podemos ser ricos sem trabalhar ou que podemos ter serviços excelentes tratados sem consideração nem lógica.
    Margarida, claro que temos que por em causa "sistemas" até porque eles se tornaram, em boa parte, obsoletos ou prisioneiros de interesses corporativos, esquecendo o seu sentido essencial de serviço público. Mas o problema é quando não se pensa no que se perdepelo caminho e ficamos muito surpreendidos por ver que afinal, com a mudança, também se deitou fora muito do que não estaríamos dispostos a prescindir.

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  5. Fala quem sabe! É exatamente assim...

    Não era por acaso que durante a vigência do Estado Novo se construiam habitações com rendas escalonadas destinadas aos funcionários públicos... Não me admira nada que hoje um trabalhador (é a designação genérica para funcionários do estado), negoceie com quem lhe pagar melhor o seu produto (trabalho), pois na verdade nada tem a perder, a segurança já não é o que era...

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