Procuro, às vezes com certo afã, outras não, sou mais comedido, a espontaneidade e a generosidade do povo, vendo-o, sentindo-o e escutando-o.
A sala de repasto estava compostinha, algumas pessoas eram-me desconhecidas, mas os habituais estavam presentes, ocupando os seus lugares aparentemente cativos, uma espécie de código a respeitar aos domingos. A televisão debitava notícias atrás de notícias, sem que alguém se incomodasse com o que quer que fosse que estava sair do aparelho, a não ser com o conduto, o pão, o tinto, algumas referências ao trabalho do campo, ao morto do dia, misturados com o recolher minucioso dos restos alimentares para enfiar em sacos de plástico, porque as galinhas lá do sítio sabem que hoje é domingo, ou terem de escutar o comentário em alta voz da diabética ao atacar uma generosa "malga" de arroz doce, "eu só sou gulosa aos domingos". Entretanto fala o Alberto João. Interrompe-se tudo, garfadas, goladas, conversas, o recolher dos restos e até a voz tonitruante da senhora com diabetes. Após uns breves segundos de silêncio, começo a ouvir alguns comentários à maneira, "com ele ninguém se mete", "buracos também nós temos", "eles que paguem do bolso deles, nós pagamos do nosso". Daqui passou-se para os pagamentos, "agora temos de pagar mais a eletricidade a partir de hoje", "é da maneira que não vou acender a televisão", "pois é, a partir de janeiro vão cortar a televisão, é preciso uma máquina nova para a ver", "eu não vou gastar dinheiro, trinta ou quarenta contos para a ver, era o que mais faltava". "Pois eu, vou comprar". Disse uma velhota que, sozinha, estava a atacar com uma avidez pouco habitual os restos da carne que teimosamente não queria despegar do osso, "a televisão é a minha distraição", e, para que todos ouvissem, limpou os beiços, verteu metade do copo de vinho na boca para empurrar a carne, repetindo para os que estavam atrás, "é verdade, é a minha única distraição e pago o que for preciso".
(Dis)traição! Uma palavra nova que eu registei, não com o sentido que a senhora queria explicitar, distração, obviamente, mas que eu ajustei à realidade do dia-a-dia. Todos conhecem o significado da palavra traição, mas se juntarmos o prefixo "dis", que "exprime noção de perturbação ou dificuldade", então, podemos concluir que andamos mesmo "(dis)traídos". Andam a trair-nos de uma forma despudorada, mas querem convencer-nos de que não, que são pessoas sérias, honestas, que só querem o nosso bem, mas no fundo traem-nos, e como não querem dar a entender que nos atraiçoam, entretêm-se com distrações que, na maioria das vezes, não são mais do que (dis)traições. A melhor forma de as transmitir é através da televisão. Afinal, a observação da velhota, segundo a qual não pode passar sem a televisão, porque é a sua "distraição", é bem conhecida dos (dis)traidores, sejam eles quem for, políticos, comentadores, comediantes e muitos outros que devem "vender", mas não a pataco, o espaço que lhes é destinado.
Espero que os tenha distraído, no verdadeiro e genuíno sentido do termo...
Distraído me confesso, no bom sentido do termo, com mais esta deliciosa crónica, Professor. Não deixe nunca de nos trair assim...
ResponderEliminarAs saudades que eu já tinha
ResponderEliminarD'esta bela escritinha
Trazida pelo Salvador
Que nos salva desta dor
Irmã da ausência daninha
Quando não lhe vimos a cor.
;))))
Desculpe-me a intimidade do tratamento, caro Professor, mas nesta coisa das rimas...
Não fosse o caso de ter introduzido no texto a figura mediatica do Sr. Alberto Jóta, Jóta e estava já a aguçar o dente para o acusar de estar a plagiar Ettore Scola e o seu clássico "Feios, Porcos e Maus".
Assim, limito-me a concordar com a a análise e a confirmar a minha cumplicidade no pensamento que expressa.
E... já agora, complemento o meu comentário com o poema de Pedro Homem de Mello, porque retrata o nosso povo, na essência da sua genuinidade e porque faz anos que Amália subiu ao assento etéreo e ao panteão dos notáveis; apesar de que, essas distinções, não cabem no meu conceito de igualdade e fraternidade. Bom, adiante.
Povo Povo que lavas no rio,
Que vais às feiras e à tenda,
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão,
Pode haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida, não!
Meu cravo branco na orelha!
Minha camélia vermelha!
Meu verde manjericão!
Ó natureza vadia!
Vejo uma fotografia...
Mas a tua vida, não!
Fui ter à mesa redonda,
Bebendo em malga que esconda
O beijo, de mão em mão...
Água pura, fruto agreste,
Fora o vinho que me deste,
Mas a tua vida, não!
Procissões de praia e monte,
Areais, píncaros, passos
Atrás dos quais os meus vão!
Que é dos cântaros da fonte?
Guardo o jeito desses braços...
Mas a tua vida, não!
Aromas de urze e de lama!
Dormi com eles na cama...
Tive a mesma condição.
Bruxas e lobas, estrelas!
Tive o dom de conhecê-las...
Mas a tua vida, não!
Subi às frias montanhas,
Pelas veredas estranhas
Onde os meus olhos estão.
Rasguei certo corpo ao meio...
Vi certa curva em teu seio...
Mas a tua vida, não!
Só tu! Só tu és verdade!
Quando o remorso me invade
E me leva à confissão...
Povo! Povo! eu te pertenço.
Deste-me alturas de incenso,
Mas a tua vida, não!
Povo que lavas no rio,
Que vais às feiras e à tenda,
Que talhas com teu machado,
As tábuas do meu caixão,
Pode haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida, não!
;))
Pode haver quem nos defenda,
Quem turve o nosso ar sadio,
Quem compre o nosso chão sagrado,
Mas a nossa vida, não!
;)))
PS;
ResponderEliminarO caríssimo Professor já notou que se prespectiva um novo almoço-tertúlia-quartarepublicano?!
Caro Profssor Massano Cardoso,
ResponderEliminarÉ verdade, tem sido uma "distraição" por atacado!... Mas por hoje, começo o dia distraído, no bom sentido da palavra, tal como o Drº Ferreira de Almeida...
Que bom ter de volta o Prof Massano! Espero tenha descansado. Passei ontem por um local referenciado pelo Prof e pude ler "Mors, ultima ratio" e expermintar
ResponderEliminar/perceber a razao do cansaço referido aqui ha algum tempo pelo Prof. Mas que local para leitura e descanso!...
Quanto ah dis(traição), ela funciona lindamente, tendo em conta o nivel dos programas que sao transmitidos, sobretudo nas tv generalistas.
E agora, utilizando a linguagem do meu jogo favorito: Wb Prof. MC!! ("Wb" significa "Welcome back", para os menos entendidos).
ResponderEliminarÉ muito bom poder lê-lo novamente. :)
Amigo Bartolomeu, vou pedir-lhe encarecidamente que não perspectivem nada já para este fim-de-semana (se tiver sido essa a opção)... é que o coitadito do finlandês que tenho lá em casa está todo partidito. Arranjou-me (a mim não, a ele) uma hérnia cervical e agora mal se mexe. :S... bom, ao menos já deu para ir conhecer as urgências do Hospital S. Francisco Xavier... são um bocadinho estranhas e fácil de perceber porque é que se arranjam tantas infecções.
Ah sim?!
ResponderEliminarA Sô Dona Anthrax sobrecarregou o seu amado Finlandês?
Então prepare-se para pagar a correspondente indemnização...
Por acaso estava a pensar propôr o próximo fim de semana para realização do encontro gastronómico. O tempo tem andado de feição para se poder aproveitar o ar livre. Mas sendo assim... pela minha parte, podemos adiar. Afinal de contas o campo também tem o seu encanto, quando neva.
Quanto ao S. Francisco Xavier... talvez a melhor opção nesse caso, tivesse sido "O Endireita". Lá ao pé de Arruda ha um munta bom... dizem que dá uns puxões no pessoal caquilo desaparecem as dores em 3 tempos...
;)))
Cuidado com os endireitas! Falo dos que manipulam os ossos. Quanto aos outros não nos livramos...
ResponderEliminar