São quase horas para ir almoçar, pensei. Eis que o telemóvel toca estridentemente, fruto da velhice e de avarias a prenunciar a sua morte, mas mesmo moribundo consegue inquietar-me. Olho para o écran e verifico que é um telefonema do meu serviço. Qualquer banalidade, pensei. Após umas trocas de impressões, a confirmar que eram as trivialidades do costume, estava prestes a desligar quando do outro lado me avisaram: - Estão aqui dois alunos que querem urgentemente falar com o senhor professor, quando é que pode recebê-los? Não gosto de adiar nada e, quase que imperceptivelmente, dei a entender que poderia falar já com eles, afinal, os meus colaboradores já me conhecem suficientemente. - Posso passar o telefone? - Pode. Mas o que será que os alunos querem tratar tão urgentemente, se ainda ontem tive uma aula com eles? Fiquei ansioso, como é meu timbre, e quando comecei a ouvi-lo, dizendo que ontem à tarde, no decurso de uma aula teórico-prática, tinha ocorrido um problema, pus-me logo de atalaia, com os neurónios a saltitarem, as glândulas suprarrenais a hipersecretarem e a preparar-me mentalmente para mais um quadro de confusão que teria de resolver. - Será que algum assistente cometeu algo de errado que pudesse ferir os direitos dos alunos, sabendo quão reivindicativos e, até, mesmo intolerantes se tornaram nos últimos tempos? Não! Afinal foi o aluno a comunicar-me que ele e um outro colega, devido a sobrecarga de trabalho e à necessidade de apresentar trabalhos para outras disciplinas, pediram a um outro para que assinasse pelos dois. Só que a minha assistente, que não é nada burra, procedeu no final da aula à chamada dos alunos. Os dois que tinham "assinado" não responderam, como é óbvio. Perante tão inusitado comportamento informou que iria dar conhecimento ao regente da disciplina. Um acontecimento verdadeiramente insólito, até porque legalmente os alunos têm direito a dar as faltas previstas no regulamento sem qualquer problema, mas iriam perder as benesses decorrentes dos que não faltassem às aulas. Tiveram a consciência de terem cometido uma fraude e, por esse motivo, anteciparam-se, denunciando-se. Ouvi e nem quis acreditar. Deu as explicações que entendeu sem conseguir justificar a falta. Ouvi, respirei fundo, em silêncio, e perante a situação tive que tomar uma decisão. Em primeiro lugar, o sermão habitual nestas coisas. Blá, blá, blá. O que seria de esperar. Em seguida disse-lhe que ele, e os outros dois colegas, deveriam, publicamente, ou seja, em frente dos colegas da turma a que pertencem, pedir desculpa à assistente. Espero, não tenho a certeza, que tenham aprendido alguma coisa e que esta história não seja mais tarde contada como um episódio de irreverência estudantil, porque não foi. Espero que nunca contem a ninguém, que guardem só para eles e que os ajude a não usar estratagemas do género no futuro. Ninguém deveria proceder como procederam, mas vão ser médicos e, como tal, irão defrontar-se com muitas responsabilidades. Não lhes contei o que vou fazer em seguida, não vão poder beneficiar do facto de não terem nenhuma falta, tal como foi previsto no início do ano, mas, legalmente, não serão privados dos seus direitos, porque podem dar até vinte por cento de faltas.
Acabei de almoçar há pouco e tive que escrevinhar este pequeno apontamento. Não escolhi o sítio, foi o local que me obrigou a escrever. Pela primeira vez na vida escrevi um texto numa igreja. Gosto deste espaço acolhedor, silencioso e tranquilo. Sentei-me perto do local onde durante muitos anos esteve sepultado o marquês de Pombal, de acordo com a lápide que se encontrava à minha frente, sob o olhar atento da Senhora do Cardal. Não sei qual dos dois me inspirou, mas pouco interessa, talvez tenham sido ambos.
Acredito que os tais alunos tenham, hoje, crescido um pouco. Quero mesmo acreditar, acreditem, porque se não cresceram...
Não devia, pelos motivos que já expliquei, estar a comentar este texto.
ResponderEliminarMas, quando temos conhhecimento de uma situação que causa algum incómodo a um Amigo, sentimos o impulso natural de lhe manifestar a nossa solideriedade.
O túmulo do Marquês, encontra-se mais perto "de mim" na Igreja da Memória", aquela que foi mandada construír pelo Marquês, para assinalar o atentado à vida do Rei D. José.
O Marquês foi implacável, mandando executar de diversas formas, vários membros da família dos Távora.
Assim, é lógico que se conclua que a inspiração lhe tenha vindo do olhar atento da Senhora do Cardal, talvez ligeiramente apicantada pelo esquadro e o compasso do Marquês.
Os jovens médicos, pelo facto de se terem apresentado perante o professor, demonstraram-se conscientes da falta em que incorreram, até poderão mais tarde, como tantos outros, vangloriar-se de em tal dia terem praticado uma esperteza, mas lá no fundo, saberão sempre, que terá sido "uma esperteza saloia".
Depois... tenho a certeza que os princípios que lhes são incutidos pelo "mestre", vencem em fortaleza qualquer outro impulso de repetição da gracinha.
;)
Caro Professor Massano Cardoso:
ResponderEliminarAcredito que tivessem crescido mais um pouco, retratarem-se assim frente aos colegas é coisa que não vão esquecer!...
A urgência em lhe falar para serem eles mesmos a dar a mão à palmatória antes que soubesse da história por outras fontes já mostra bem o grau de respeito que lhe têm, caro Porf, e o temos das suas censuras. Só por isso lhes deve ter doído a lição e aposto que não esquecem, talvez agora redobrem em zelo para recuperar as suas boas graças!
ResponderEliminarCaro Professor Massano Cardoso
ResponderEliminarFoi positivo terem sentido a necessidade de correrem a contar ao seu Professor, sabiam que tinham actuado muito mal. Vai fazer-lhes bem retratarem-se perante os colegas. É uma lição que vai contribuir positivamente para a sua formação. Há erros que ajudam a crescer.