A senhora hesitava em sair do balcão dos serviços da Câmara, que ficam no cemitério, como se lhe faltasse ainda tratar qualquer coisa além da data da exumação. Já ia para a porta quando ganhou coragem e voltou atrás.
- “Desculpe, mas tenho que perguntar uma coisa que está a atormentar-me. Os meus pais estiveram casados 65 anos, conheceram-se de pequeninos, foi sempre um grande amor e eu fui testemunha dessa felicidade que ambos viveram até ao fim da vida. Ela morreu há 14 anos, um dia depois do aniversário dele, parece que não quis estragar-lhe o dia, ele morreu há cinco anos no dia dos anos dela, parece que esperou por esse dia para ir ao seu encontro. Por duas vezes tentámos levantar as ossadas dela e até hoje não foi possível, como se ela estivesse à espera dele, vamos agora tentar de novo, os dois no mesmo dia, algo me diz, não me pergunte porquê, mas tenho a certeza de que nessa data estarão os dois prontos para se fazer a mudança dos ossos. Por isso eu queria saber se é possível juntar os dois na mesma sepultura, sabe, é que parece mesmo que eles estão a pedir, eles estão a pedir para os deixarmos juntos para a eternidade…
O funcionário ouviu respeitosamente mas aí a meio da conversa começou a abanar a cabeça, como a prepará-la para a conclusão. Que compreendia, mas nunca ninguém tinha feito tal pedido, um pedido estranho, de facto, porque aos mortos tanto faz onde ficam e com quem, tanto quanto sabia, e assim de repente, não era possível, só falando com o chefe...
A senhora ganhou novas forças e insistiu, o senhor vê, foi uma vida inteira, acho que tenho que tentar tudo para ter paz de consciência, não vê?, eles estão a pedir, que diferença fará ao cemitério, pelo contrário, é menos espaço ocupado, eu pago como se fosse dois, eu escrevo uma carta a quem for preciso, adia-se tudo até haver alguém que autorize, tenho tempo, só quero fazer-lhes esta vontade. Fico então à espera.
Ela saíu, a conter a emoção, e ainda eu não tinha o meu assunto tratado quando entrou o chefe, não seria o chefe máximo, como se viu, porque ouviu calado o extraordinário pedido, o que as pessoas inventam, cada um tem direito à sua fé, mas regras são regras e não é possível, claro que não é, mas pode-se perguntar ao Director, ele que decida.
Entrei então na conversa, não resisti, a história da senhora e as suas razões pareceram-me imperiosas e, sobretudo, um raro sinal de grande respeito e amor pelos pais e pela sua memória. A saudade tem destas coisas, dá-nos a ilusão de que podemos continuar a amá-los como dantes, a provar-lhes que ainda não os abandonámos e que podem contar connosco para todo o sempre, como se ainda teimássemos em fazê-los sentir o calor do nosso afecto. Perguntei porque é que não seria possível, que interesse se estaria a defender, e o chefe interessou-se, também não sabia, enfim, nunca tinha pensado nisso, mas vamos que alguém, nunca aconteceu, claro, mas vamos que queira daqui a uns anos levantar os ossos só de um e mudá-los para outro lado, já não seria possível separá-los, já viu o sarilho?
Bem, insisti, se formos sempre a pensar em tudo o que pode teoricamente acontecer então é tudo proibido, o chefe admitiu que sim, mas sabe a senhora?, isto com os filhos é tudo possível, nem imagina os problemas que há com as guerras entre os filhos, vamos perguntar ao Director, pode ser, mas duvido muito, terão que ficar cada um na sua campa e no talhão em que calharam, a vida em conjunto acabou-se e no caso tiveram sorte, porque foi longa e feliz, quantos não há a quem só a morte dá sossego!
Não sei se resisto a ir lá um dia destes perguntar o que é que ficou decidido. É que, quanto a mim, a filha tem toda a razão, pelos sinais parece mesmo que eles estão a pedir…
- “Desculpe, mas tenho que perguntar uma coisa que está a atormentar-me. Os meus pais estiveram casados 65 anos, conheceram-se de pequeninos, foi sempre um grande amor e eu fui testemunha dessa felicidade que ambos viveram até ao fim da vida. Ela morreu há 14 anos, um dia depois do aniversário dele, parece que não quis estragar-lhe o dia, ele morreu há cinco anos no dia dos anos dela, parece que esperou por esse dia para ir ao seu encontro. Por duas vezes tentámos levantar as ossadas dela e até hoje não foi possível, como se ela estivesse à espera dele, vamos agora tentar de novo, os dois no mesmo dia, algo me diz, não me pergunte porquê, mas tenho a certeza de que nessa data estarão os dois prontos para se fazer a mudança dos ossos. Por isso eu queria saber se é possível juntar os dois na mesma sepultura, sabe, é que parece mesmo que eles estão a pedir, eles estão a pedir para os deixarmos juntos para a eternidade…
O funcionário ouviu respeitosamente mas aí a meio da conversa começou a abanar a cabeça, como a prepará-la para a conclusão. Que compreendia, mas nunca ninguém tinha feito tal pedido, um pedido estranho, de facto, porque aos mortos tanto faz onde ficam e com quem, tanto quanto sabia, e assim de repente, não era possível, só falando com o chefe...
A senhora ganhou novas forças e insistiu, o senhor vê, foi uma vida inteira, acho que tenho que tentar tudo para ter paz de consciência, não vê?, eles estão a pedir, que diferença fará ao cemitério, pelo contrário, é menos espaço ocupado, eu pago como se fosse dois, eu escrevo uma carta a quem for preciso, adia-se tudo até haver alguém que autorize, tenho tempo, só quero fazer-lhes esta vontade. Fico então à espera.
Ela saíu, a conter a emoção, e ainda eu não tinha o meu assunto tratado quando entrou o chefe, não seria o chefe máximo, como se viu, porque ouviu calado o extraordinário pedido, o que as pessoas inventam, cada um tem direito à sua fé, mas regras são regras e não é possível, claro que não é, mas pode-se perguntar ao Director, ele que decida.
Entrei então na conversa, não resisti, a história da senhora e as suas razões pareceram-me imperiosas e, sobretudo, um raro sinal de grande respeito e amor pelos pais e pela sua memória. A saudade tem destas coisas, dá-nos a ilusão de que podemos continuar a amá-los como dantes, a provar-lhes que ainda não os abandonámos e que podem contar connosco para todo o sempre, como se ainda teimássemos em fazê-los sentir o calor do nosso afecto. Perguntei porque é que não seria possível, que interesse se estaria a defender, e o chefe interessou-se, também não sabia, enfim, nunca tinha pensado nisso, mas vamos que alguém, nunca aconteceu, claro, mas vamos que queira daqui a uns anos levantar os ossos só de um e mudá-los para outro lado, já não seria possível separá-los, já viu o sarilho?
Bem, insisti, se formos sempre a pensar em tudo o que pode teoricamente acontecer então é tudo proibido, o chefe admitiu que sim, mas sabe a senhora?, isto com os filhos é tudo possível, nem imagina os problemas que há com as guerras entre os filhos, vamos perguntar ao Director, pode ser, mas duvido muito, terão que ficar cada um na sua campa e no talhão em que calharam, a vida em conjunto acabou-se e no caso tiveram sorte, porque foi longa e feliz, quantos não há a quem só a morte dá sossego!
Não sei se resisto a ir lá um dia destes perguntar o que é que ficou decidido. É que, quanto a mim, a filha tem toda a razão, pelos sinais parece mesmo que eles estão a pedir…
Tenho noção que até certo ponto, estaremos a "meter a foice em seara alheia", se dermos início a uma onda de solideriedade para com a Senhora do post e a petição por ela apresentada.
ResponderEliminarNo entanto e dado que o deferimento do pedido depende da boa vontade e compreensão de um director de serviços, não indo ele, ao que parece, de encontro a qualquer disposição legal e ainda porque os argumentos apresentados pela filha do casal, parece-me da máxima justiça enviar ao responsável dos serviços competentes, uma quantidade significativa de mails, dirigidos ao responsável do serviço, reforçando o pedido em apreço.
Se a cara Drª Suzana, tiver a possibilidade de nos indicar o nome da Senhora que faz o pedido e o endereço electrónico dos serviços do cemitério, disponho-me desde já a começar a redigir as missivas.
Estão mesmo a pedir! Claro que estão. O Diretor sabe e com toda a certeza vai deferir o pedido. Um pedido pouco habitual exige uma resposta pouco habitual. Para isso é que servem os chefes...
ResponderEliminarSuzana
ResponderEliminarAs regras existem porque há excepções, pois que seja o Director a decidir, nem que tenha que subir mais alto para que alguém com coração e razão saiba dizer sim ao pedido daquela filha tão cheia de amor.
Como eu entendo a vontade da tal senhora e a sensibilidade da Dra Susana, expressa neste post!
ResponderEliminarHa anos que "luto" com as regras da CMP para que a divisão de um jazigo no Cemitério de Agramonte seja clara - i.e., que, quando divisível, 50% de um jazigo (neste caso concreto com 2 sepulturas) correspondentes ao lado esquerdo do jazigo, seja dos descendentes da familia A e os outros 50%, correspondentes ao lado direito do mesmo jazigo, seja dos descendentes da familia B - e impeca que seja enterrado alguém onde repousa a minha Mãe. Tal como era sua vontade, salvo os seus descendentes directos. Mas parece nao haver compreensão da Câmara para tal clarificação. E como os herdeiros da outra metade do jazigo nao respeitam nada nem ninguém, receio ter, um dia, uma terrível surpresa...
Valha-me Deus!, estes casos exigem alguma elasticidade mental, no sentido de que o desejo dos cidadãos deve ser considerado em primeiro lugar (desde que daí não advenham prejuízos para terceiros, obviamente).
ResponderEliminarOs regulamentos são para se cumprir, é certo, mas também são generalidades que podem ter interpretação diversa, sem que daí advenha mal ao mundo!. Não bastaria neste caso uma declaração reconhecida a expressar a pretensão da cidadã ilibando, desta forma, os serviços de quaisquer responsabilidades!?
Tenho para mim que esta cidadã bem pode ter fé, mas mesmo muita fé, a não ser que se disponha ir àqueles programas televisivos da desgraçadinha contar a sua desdita: -Olhe Júlia, nasci para sofrer e os meus filhos também, conte tim tim por tim tim e, assim sim, vem logo o vereador dos cemitérios, aproveita o momento para as habituais patacoadas, a patroa em casa baba-se de o ver na TV, conta aos vizinhos, o director passa por atrasado mental depois…bem!, acabam a chorar, com beijos e abraços de felicidade, a Júlia, a cidadã e o vereador também, pois então…
Uma história enternecedora... de um lado a burocracia paralisante, do outro lado o amor sublime...que fazer?
ResponderEliminarNão consigo entender esta "história". O que impede o depósito das duas ossadas na mesma campa, se essa é a vontade de um familiar directo e o mais "chegado"?
ResponderEliminarLamento sinceramente que o poder dos burocratas continue a imperar e se criem dificuldades onde seria suposto não existirem.
Justifico a minha dificuldade de compreensão com uma situação destas, pelo facto de as ossadas dos meus pais estarem depositadas na mesma sepultura. Foi essa a minha vontade e assim foi feito, já lá vão 14 anos. Digo mais, as ossadas do que faleceu primeiro (o meu pai), foram depositadas no interior da urna de minha mãe, ao lado da sua cabeceira. Assim ficarão por vontade dela, que corroborei.
Ninguém me levantou qualquer dificuldade e nem sequer me passou pela cabeça, que tal pudesse acontecer.
Tenho dito