O domingo não acordou como eu queria, não me ofereceu aquele bocadinho de descanso e de tranquilidade que julgo merecer, não é que peça muito, mas sabe-me tão bem desfrutar algumas horas de sossego. Fiquei perturbado e ansioso com a notícia. Doenças atingem qualquer um, mas quando toca os nossos é como se as sentíssemos a arder duplamente na nossa alma, fruto da intimidade biológica e familiar e de trágicos passados que nunca mais se esquecem. Ao final do dia pude verificar que havia razões para os meus temores, que se intensificaram desmesuradamente. Providências, aconselhamentos e estratégias foram rapidamente planeadas. O pior é que no dia seguinte tive de ir a Lisboa onde permaneci dois dias para cumprir obrigações académicas. Um sufoco. Comandar a situação à distância é horrível. A espera de alguns resultados, que, teimosamente, faziam de horas, atormentava-me dolorosamente. As formalidades e as exigências das provas acicatavam mais a angústia. Depois veio o final da tarde. Vi o sol a descair na noite lançando raios de um vermelho muito frio, indiferente à dor e a lembrar que muitos veem-no assim pela última vez. A tarde já se tinha tingido de um cinzento inumano. Assustou-me. Até o negro da noite parecia estranhamente coberto de cinzas. Sempre à espera. Chegaram alguns resultados, outros não. Nada que diminuísse o meu tormento, apenas conseguiram estreitar o leque de hipóteses, só isso, porque as restantes ficaram com mais espaço para se exprimirem sob a forma de labaredas infernais.
Olho e sinto estar numa cidade cheia de sons mas vazia de emoções. Ruas tristes, despovoadas, ando sem objetivo e o relógio recusa-se a acompanhar as minhas preocupações. Procuro um restaurante para jantar, mas sem vontade de comer. Antes de entrar num, completamente vazio, também era muito cedo, toca o telemóvel. Reconheci de imediato a voz do meu amigo. Perguntei se estava tudo bem, mas o timbre denunciava que algo estaria mal. Numa voz embargada, chorosa, conta-me que tinham acabado de diagnosticar ao pai um dos tumores mais malignos e mais traiçoeiros que atinge os seres humanos. O seu desespero era tão vivo, tão perto, tão intenso que se sobrepôs aos meus tormentos. Via as suas lágrimas a correrem como notas de infortúnio na noite coberta de cinzas que me cobria como se fosse o manto da morte. Tive de o aconselhar e de o preparar para o que está para vir. Disse o que devia, colocando-me à inteira disposição para o acompanhar no calvário que se avizinha. Nestas alturas é preciso apoio, muito apoio e saber que podemos ajudar de muitas maneiras. Senti que o conforto o invadia apesar do fatalismo da tragédia anunciada. Entrei no restaurante e procedi à liturgia da refeição; sem fé nenhuma cumpri um ritual obrigatório. Regressei ao hotel, mas o vazio do espaço importunou-me e a música de fundo despertou-me uma sensação de enjoo. Curiosamente, os quartos, além do respetivo número, tinham designações musicais, o meu correspondia à "sétima legião", que interpretei mais com a bravura romana do que o grupo musical. Bravura era coisa que me faltava naquele momento. Noite longa e pouco repousante. A manhã não trouxe as novidades desejadas ou temidas. Almoço a fingir. Prova com formalismo clássico, pesada e com o tempo a rir-se das angústias de que é mestre em gerar nas nossas almas. Terminou. O júri abandonou a sala para deliberar. Nessa janela temporal consegui indagar os resultados que estava à espera desde o dia anterior. Uma sensação de alívio invadiu-me a alma.
Antes de regressar a casa, e durante o percurso, ainda ocorreram alguns incidentes, mas não os valorizei, não mereciam.
Ao serão tive acesso a uma crónica de Miguel Esteves Cardoso, "Chorar em público", onde relata o seu drama e o da sua mulher. Cativante. Diz o cronista a páginas tantas: "Chorar em público é como pedir que nada de mau nos aconteça". É isso mesmo, mas, infelizmente, muitas vezes o pedido não é atendido.
Deveremos escrever o que sentimos? Sim, porque não é só escrever, é saber partilhar o que se sente e quando sentimos é como se fosse um de nós a "chorar em público". Depois é uma mera questão de tempo...
Olho e sinto estar numa cidade cheia de sons mas vazia de emoções. Ruas tristes, despovoadas, ando sem objetivo e o relógio recusa-se a acompanhar as minhas preocupações. Procuro um restaurante para jantar, mas sem vontade de comer. Antes de entrar num, completamente vazio, também era muito cedo, toca o telemóvel. Reconheci de imediato a voz do meu amigo. Perguntei se estava tudo bem, mas o timbre denunciava que algo estaria mal. Numa voz embargada, chorosa, conta-me que tinham acabado de diagnosticar ao pai um dos tumores mais malignos e mais traiçoeiros que atinge os seres humanos. O seu desespero era tão vivo, tão perto, tão intenso que se sobrepôs aos meus tormentos. Via as suas lágrimas a correrem como notas de infortúnio na noite coberta de cinzas que me cobria como se fosse o manto da morte. Tive de o aconselhar e de o preparar para o que está para vir. Disse o que devia, colocando-me à inteira disposição para o acompanhar no calvário que se avizinha. Nestas alturas é preciso apoio, muito apoio e saber que podemos ajudar de muitas maneiras. Senti que o conforto o invadia apesar do fatalismo da tragédia anunciada. Entrei no restaurante e procedi à liturgia da refeição; sem fé nenhuma cumpri um ritual obrigatório. Regressei ao hotel, mas o vazio do espaço importunou-me e a música de fundo despertou-me uma sensação de enjoo. Curiosamente, os quartos, além do respetivo número, tinham designações musicais, o meu correspondia à "sétima legião", que interpretei mais com a bravura romana do que o grupo musical. Bravura era coisa que me faltava naquele momento. Noite longa e pouco repousante. A manhã não trouxe as novidades desejadas ou temidas. Almoço a fingir. Prova com formalismo clássico, pesada e com o tempo a rir-se das angústias de que é mestre em gerar nas nossas almas. Terminou. O júri abandonou a sala para deliberar. Nessa janela temporal consegui indagar os resultados que estava à espera desde o dia anterior. Uma sensação de alívio invadiu-me a alma.
Antes de regressar a casa, e durante o percurso, ainda ocorreram alguns incidentes, mas não os valorizei, não mereciam.
Ao serão tive acesso a uma crónica de Miguel Esteves Cardoso, "Chorar em público", onde relata o seu drama e o da sua mulher. Cativante. Diz o cronista a páginas tantas: "Chorar em público é como pedir que nada de mau nos aconteça". É isso mesmo, mas, infelizmente, muitas vezes o pedido não é atendido.
Deveremos escrever o que sentimos? Sim, porque não é só escrever, é saber partilhar o que se sente e quando sentimos é como se fosse um de nós a "chorar em público". Depois é uma mera questão de tempo...
Caro Professor Massano Cardoso
ResponderEliminar"Chorar em público" às vezes é preciso. E se faz bem porque não fazê-lo. São momentos terríveis quando a sentença de morte é anunciada. A vida, de repente, dá uma cambalhota. O apoio que podemos dar é muito aconchegante porque contém em si uma chama de esperança.
Não deixar as pessoas sozinhas com as suas angústias e os seus temores já é uma ajuda preciosa, às vezes tão valiosa como os melhores conselhos médicos. Infelizmente, na desgraça sentimo-nos sempre tão solitários... Um abralo amigo.
ResponderEliminarCaro Professor:
ResponderEliminarO texto é um magnífico testemunho de amizade e de solidariedade perante o infortúnio e os acidentes da vida. Mas há sempre uma esperança no horizonte.
Irei editar um post sobre a esperança,em homenagem ao meu amigo.
Subscrevo o comentário do caro Drº Pinho Cardão
ResponderEliminarChorar é assim a prova maior de humanidade, meu caro Professor. Nos momentos felizes como naqueles que, pertencendo à vida, nos deixam imensamente amargurados. Lágrimas sim, mas também a luz da esperança como escreve o nosso Pinho Cardão. Um grande abraço de amizade.
ResponderEliminarConte connosco para o que for preciso.
ResponderEliminarSe a esperança. tem rosto, os comentários que li são algumas das suas imagens. É bom vê-las e mais confortável senti-las...
ResponderEliminarDiz o povo que ninguém sabe a sorte que a vida lhe destina quando nasce. Uns passam meio despercebidos, outros alcandoram-se nos cornos da lua, e a maioria, silenciosamente, desfruta de pequenos prazeres e suaves alegrias, quase sempre mesclados de ligeiros contratempos, mas há, também, seres humanos que, tocados pelo infortúnio, são marcados na carne e na alma a fogo. Olham para a sua vida e perguntam: - E agora, o que é que vai ser de mim? Nada de mais, são nuvens da vida. E não há nuvem, seja ela branca, cinzenta ou negra, capaz de roubar a cor do céu da vida!
ResponderEliminarComo já vivenciei e continuo a vivenciar estas experiências e como considero que a vida se move como o tempo, uns dias mais nublosos do que outros, vejo tudo isto não só sobre a forma de angústia, medos e de dores, mas também como forma de esperança... A vontade de viver é grande, cada vez maior, por infinitas razões!
As nuvens já se estão a dissipar e o céu está a voltar a ficar azul, azul...
Um beijinho :)