Há muitos anos, um amigo, que me tinha convidado para degustar um leitão à maneira, mostrou-me a quinta e a casa. Numa das salas disse-me: - Vou-lhe mostrar uma coisa, que, provavelmente, nunca viu. Coloca-me nas mãos uma massa seca, disforme, revelando que teria tido uma natureza vegetal, mas estava seca, morta. - Sabe o que é? - Não! - Uma rosa. - Uma rosa? - Uma rosa de Jericó. Se colocar em água ressuscita e fica muito bonita. Depois, sem água, volta a secar e retorna a este aspeto, podendo permanecer durante décadas neste estado, até voltar a viver. Fiquei estupefacto. Nunca mais esqueci este episódio. Depois, a curiosidade levou-me a conhecer que esta planta, quando não tem humidade, fica com aquele ar mirrado, sem raízes e deixa-se levar pelos ventos do deserto até encontrar condições que lhe permitem ressuscitar, daí ser conhecida, também, por flor da ressurreição.
Este fenómeno faz-me recordar outro, o aprisionamento do movimento por parte do artista, de forma a rete-lo artificialmente, permitindo que mais tarde, décadas ou séculos depois, volte a ganhar vida. O homem sabe que é mortal e por isso tem necessidade de criar coisas imortais capazes de adquirir movimento em qualquer momento. A isto podemos chamar vida.
Ao encontrar uma velha carta, o seu conteúdo pode adquirir movimento se, entretanto, escrever ou falar sobre o assunto. Esbarrar num velho livro, cair no meio de uma conversa em que velhas histórias são despertadas, defrontar-me com um acontecimento inusitado a relembrar vivências únicas, tocar ou ver um belo artefato, constituem, entre muitos exemplos, formas de por em movimento a vida.
Foi o que aconteceu com a história da checa Milada Horáková, que lutou contra os nazis e contra os comunistas, levando a que fosse enforcada por estes últimos em 1950, a paga para quem militava contra a falta de liberdade, o oxigénio da vida. Mulher desconhecida entre nós, mas que, tal rosa de Jericó, soprada pelos ventos da cultura, acabou por ressuscitar em minhas mãos, obrigando-me a pensar na maldade e na perseguição que os homens fazem uns aos outros. Não fui o único a ler esta história, outros também o fizeram e passaram a dar movimento a outras histórias, como o caso de uma checa que, já depois da liberdade do jugo comunista, foi ao seu país para assistir à morte do velho avô, médico, que, na altura do domínio totalitário, ouvia a "Voz da América", desafiando a vigilância dos controladores da consciência humana, gente ordinária, capaz das maiores atrocidades. Agora, sabia que estava a morrer em liberdade, fez o seguinte pedido à neta: - "Lenka, fazes-me um favor? Telefonas para "A Voz da América" e diz-lhes que "eles" aqui agora já deixaram de me perseguir".
Considero estes dois casos como verdadeiras "rosas de Jericó". Hoje desabrocharam. Amanhã poderão voltar ao estranho repouso, mas estou certo de que irão ressuscitar vezes sem fim ao longo dos tempos.
Horáková criou algo imortal que merece ser ressuscitado, e o velho médico checo, cujo nome desconheço, sei apenas que a neta se chama Lenka, também tem uma história para viver, que hoje me alimentou, ao recordar o significado da liberdade, um bem que pode vir a escassear...
«...recordar o significado da liberdade...»
ResponderEliminarO que devemos recordar em concreto, caro Professor?
Uma vez que, para uns, liberdade significa, ter o poder de fazer segundo a sua vontade; enquanto que, para outros, liberdade significa, poder não ser obrigado a fazer aquilo que outros querem que faça... ouseja; contra a sua vontade.
Bartolomeu.
ResponderEliminarDefinir o significado de liberdade é idêntico à definição de tempo. Houve quem dissesse, relativamente à seguinte pergunta: "O que é o tempo? Se não me perguntarem sei o que é". Quanto à liberdade posso dizer -lhe, saberá quando a perder...
Peço-lhe desculpa caro Professor mas, discordo da conclusão do seu comentário.
ResponderEliminarNo meu conceito, aquilo que defino como liberdade: não fraquejar nem ceder perante o uso abusivo do poder, é algo genético, não se conquista, nem se perde. É algo que faz parte de nós, que nos está no sangue.
Contudo, não desdenho daqueles que pensam que a liberdade é um bem supremo, pela conquista e em defesa do qual, nos compete lutar com todas as forças. No entanto, para estes, a perca, poderá acontecer...
Caro amigo Bartolomeu.
ResponderEliminarDesconheço a "genética da liberdade". Em contrapartida, há evidências genéticas do contrário,ou seja,dominar, vencer, atacar, agredir, enganar, matar, forças biológicas poderosas que estão em conformidade com o processo evolutivo. Sendo assim, o conceito de "liberdade" é uma construção cultural, recente, e que se opõe aos aspetos negativos daquelas forças.
O nosso desacordo pode dever-se ao facto de estarmos a falar de coisas diferentes, não sei.
Sem dúvida, caro Professor.
ResponderEliminarFico-lhe grato pela atenção que dispensa aos meus comentários.
Caro Professor:
ResponderEliminarDe facto, a liberdade é um bem muito escasso. Por força de demagogos que desse bem se reclamam em exclusivo, muitas vezes é consumida em excesso, o que leva à sua falta por tempos indeterminados. Matam a galinha dos ovos de ouro. Já nos tem acontecido. Oxalá não venha outra vez a acontecer.