quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Filho és, pai serás




No filme “O Último Samurai” há uma cena em que o samurai que resiste é feito prisioneiro e aguarda a decisão sobre a sua sorte. A certa altura abre-se a porta da cela e alguém entra e coloca uma espada em cima da mesa, junto ao guerreiro, num convite para que cometa hara kiri. É o sinal, escolhe uma saída com honra, és livre de fazer a tua escolha, morre como um homem ou serás tratado como um desprezível vencido.
Decorre na Holanda um debate sobre a possível legalização do suicídio assistido aos que tenham mais de 70 anos e decidam livremente escolher a morte, independentemente das razões que determinem essa vontade. O agendamento deste debate no Parlamento resultou de uma petição que recolheu mais de 100 000 mil assinaturas num mês. O fundamento será o da “liberdade de escolher”, o direito de cada um assumir que já não vale a pena viver, sendo que essa angustiosa dúvida só terá relevância social a partir dos 70 anos.
Eu gostava de saber quantas pessoas com 70 ou mais anos, ou mesmo com 65, assinaram essa petição, gostava mesmo de saber quantos dos que assinaram tratam dos seus pais ou avós, quantos tiveram a possibilidade de acompanhar com amor o envelhecimento e a decrepitude daqueles que amaram. É que eu nunca vi uma pessoa idosa desejar verdadeiramente morrer, pelo contrário, vi o apego à vida, vi as chamadas de atenção, vi o desejo de serem cuidados quando estiveram doentes. Talvez tenha tido sorte, mas nunca vi tamanho desgosto pela vida, a não ser, por vezes, o da dura consciência do peso que podem constituir para os outros, o que é coisa bem diferente.
Por isso, independentemente das muitas e variadas ordens de considerações que o tema pode suscitar, choca-me muito em especial o pequeno “detalhe” da idade: a partir dos 70 anos. Há suicídios em todas as idades, o desejo de morrer pode ser determinado por tantas circunstâncias ao longo da vida, veja-se as notícias sobre o número crescente de suicídios na Grécia, ou o drama dos suicídios entre os jovens, qual a razão, então, pela qual os defensores desta causa se cingem aos 70 ou mais anos? Qual o problema que, em consciência, sta petição pretende resolver, o dos velhos que se sentem a mais ou o dos novos que não sabem o que fazer com os seus velhos ? Tenho a noção da crueza como formulo a questão mas, na verdade, reconheço neste agendamento o avanço tenebroso de uma consciência negativa em relação aos velhos, a nossa avançadíssima civilização poderá considerar que, assim como há uma idade para a reforma, poderá vir a haver uma idade para morrer. Não será obrigatória, mas será compreendida, ficará implícita a saída “honrosa” para aqueles que não puderam encontrar, depois dessa idade/guilhotina, um sentido para a vida. Li há tempos, já não sei onde, que o grave problema da demografia e do envelhecimento colocariam muito em breve nas agendas políticas a questão do direito a morrer. Começaria por agendas libertárias, invocando os direitos individuais à livre escolha, mas seria impossível estabelecer a fronteira, onde há um direito pode muito bem passar a haver um dever, não te queixes do modo como vives ou sofres, se não estás bem suicida-te, é só pedires!, podemos muito bem imaginar este diálogo futuro entre um filho e um pai, uma versão moderna da tradição samurai ou da que se contava existir entre alguns povos nómadas, quando os velhos não conseguiam já acompanhar as caravanas deviam escolher o momento em que ficavam para trás, ao relento, até serem comidos pelas feras.
Não tenhamos dúvidas, o “direito de escolher morrer” tal como está agora em debate na Holanda, não é mais do que a formulação simpática do “dever morrer”, a agenda política ainda está embuçada no humanismo, na falsa compaixão pelos que carregam o terrível peso de se sentirem vivos e inúteis, mas se têm o direito também têm a opção, a espada do samurai será estendida para evitar a “desonra” da dependência, dos custos com a saúde, da necessidade de afeto atenções ou mesmo, quem sabe, de ser tempo de libertar heranças porque se faz tarde.
É caso para lembrarmos a parábola do velho a quem o filho vai levar para a montanha, para aí o deixar abandonado até morrer. Antes de saírem o filho estende-lhe um cobertor, para não passar frio, e o velho pede-lhe que divida o cobertor ao meio. Uma metade seria para ele levar, a outra para o filho guardar, para quando fosse a vez dele ser levado para a montanha. Filho és, pai serás, assim como fizeres, assim acharás.
A honra e a dignidade dos velhos poderá, num futuro que afinal já está em discussão, resumir-se a uma condenação. E os velhos seremos todos e cada um de nós.

6 comentários:

  1. Eu defendo a eutanásia, não apenas a partir dos 70 mas a todos que tenham uma razao medica valida.
    Porque a para mim a vida e para ser vivida com qualidade e não apenas em quantidade...

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  2. Cara Dra. Suzana Toscano,
    Parabéns por este excelente texto. Nota-se, aqui, uma ligação íntima da inteligência com a emoção, bem notória nas interpelações que faz à consciência do leitor, e ainda mais sublimado no provérbio - filho és pai serás, assim como fizeres assim acharás-, que tantos de nós ouvimos da boca dos avós, hoje, em desuso.
    Vivemos numa sociedade egoísta e desumanizada em que os laços afectivos são cada vez mais periclitantes, variam conforme os interesses, senão interessa, é fácil(!), abandona-se num hospital, ou à míngua na rua, depois tenta-se abafar aquela voz da consciência que não se cala, e segue-se em frente, até ver…
    A eutanásia tem vindo a ser puxada, cada vez mais, para a ordem do dia. Sabemos que é um assunto melindroso, nada agradável para ser falada à boca cheia assim por aí, mas não vale a pena fazermos como a avestruz, encaremos com serenidade o problema.
    Sou a favor da eutanásia em determinadas circunstâncias, que não vale a pena aqui aflorar; mas, estou de acordo consigo, há perigos enormes associados à sua “liberalização”, agora que alerta, parecem fazer parte do discurso político…

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  3. Com sua licença, vou levar para o facebook. :)

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  4. Cara Dra. Susana Toscano,
    Não será que certas pessoas embora estejam vivas, vivam em permanente estado de eutanásia? Viver é acima de tudo termos respeito pela nossa própria dignidade humana e creio que essa conquista é que determinará o momento certo de colocar um ponto final à própria vida.
    É esse o momento, o sinal, para que possamos sentir o que a Dra. Susana escreveu no seu post.
    “...escolhe uma saída com honra, és livre de fazer a tua escolha, morre como um homem ou serás tratado como um desprezível vencido”.

    mr

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  5. Quero ressaltar esta passagem:

    "Li há tempos, já não sei onde, que o grave problema da demografia e do envelhecimento colocariam muito em breve nas agendas políticas a questão do direito a morrer. Começaria por agendas libertárias, invocando os direitos individuais à livre escolha, mas seria impossível estabelecer a fronteira, onde há um direito pode muito bem passar a haver um dever, não te queixes do modo como vives ou sofres, se não estás bem suicida-te, é só pedires!"
    De facto, apesar de ser completamente a favor do suicídio assistido, estou inteiramente de acordo com esta visão particularmente espelhada neste parágrafo.Existe o risco do aproveitamento político, social e demográfico.Por isso não é fácil conceber uma legislação ou mesmo libertar os recursos materiais para que as pessoas possa por termo à sua vida, de forma lúcida e em plena consciência.
    Se a vida já não fizer sentido a partir de certa altura, se um/a idoso/a perdeu a sua autonomia e não encontra amparo e protecção, é natural que deseje partir.Encaro este facto sem o menor preconceito.Nas culturas africanas - e não só - onde ancestralmente os idosos são olhados com veneração e respeito, gosta-se de envelhecer.Dá estatuto e poder, ao contrário da cultura ocidental.A grande contradição e que se tornará incomportável para a humanidade, é que se "forçam" as pessoas a viver por causa de um pretenso humanismo e endeusamento da medicina que, à viva força, impede as pessoas de morrerem o mais naturalmente possível, prolongando desnecessariamente vidas, que já nem são dignas de ser vividas.Pior, quando as pessoas já não querem viver e são forçadas a manter-se vivas.O direito a viver como se quer ou a preferência por morrer deveriam constituir direitos como outros quaisquer.
    A questão delicada - concordo - será legislar sobre a matéria.Não e fácil, não senhora.
    Mas não tenho uma ideia completamente acabada sobre a questão e gostei de ler.
    Obrigada!

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  6. Quanto aos suicídio em geral, creio que ninguém, que esteja em grave e profundo sofrimento psicológico e esteja a ser acompanhado por alguém realmente significativo, consiga levar a cabo a sua ideação suicida.O suicídio é uma desistência drástica, radical e dramática de viver,ou conviver com uma situação insuportável devido a sofrimento incomportável.Isto aplica-se a todas as idades, incluindo crianças.Alguém que se suicidou estava ou SENTIA-SE DESESPERADAMENTE SÓ, e em situação irremediável.O drama está em que, muitas vezes as pessoas mais próximas não se dão conta do sofrimento calado de quem está ao lado.À parte as pessoas com algumas patologias do for psiquiátrico, que podem predispor mais ao suicídio, todo aquele que se suicida está em depressão grave.
    É completamente diferente de quem, embora sentindo profunda tristeza pela situação em que possa estar, tem uma percepção lúcida de que já lhe chega de VIDA de VIVER, seja porque razões forem.
    Reconheço que não é fácil distinguir com total clareza esta situação de outras em que, com propostas de alternativas à situação em que se está, poderão reverter este desejo.Continuo, porém, a dizer que é um DIREITO das pessoas, mas nunca se poderá vincular nenhum médico a este acto.NUNCA! A menos que o profissional de saúde esteja preparado e partilhe da decisão da pessoa.Partilho mais a ideia da descriminalização do acto e de quem o apoia, bem como da facilitação dos meios para o levar a termo.

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