Tenho uma propensão para andar em velharias, mas não em antiquários, um hábito com muitos anos, com interrupções mais ou menos longas, dependendo da disponibilidade e sobretudo da existência ou não de comerciantes de coisas velhas. Gosto de chafurdar na poeira, lutar contra algumas teias de aranha e sujeitar-me a ataques de espirros, por vezes compensados com a aquisição de algo interessante. Não sou propriamente um indivíduo que goste de regatear, mas, neste tipo de negócio, paradoxalmente, sabe-me bem. Talvez tenha alguma razão de ser. Como é que se dá valor a coisas "sem utilidade"? Algum valor intrínseco, obviamente, ser ou não raro e sobretudo se é cobiçado ou não pelo comprador. Mas existe outro motivo, fazer conversa com o vendedor, criar empatia, estabelecer alguma relação, ou seja, fazer negócio à maneira dos judeus. Conversar, conversar e depois no fim negociar. É muito mais fácil.
Há cerca de dois anos descobri um velhustro. Na altura comecei por adquirir quadros de um autor desconhecido, tinham algo intrínseco, beleza, criatividade, sentido estético, em suma, arte. Indiscutível. Estavam perdidos, amontoados em cantos ou debaixo de velhos móveis, em sítios praticamente inacessíveis. O valor era ridículo, e mais ridículo era a minha tentativa em baixar o preço. Depressa concluí que não era o preço o que me preocupava mais. Queria saber quem era o artista, se era vivo, onde vivia, enfim conhecer um pouco sobre o autor. Nada. O comerciante desconhecia quem era o autor, limitou-se a dizer que alguém da terra lhe trouxe os quadros e uns desenhos. Quer vê-los? Abriu a gaveta de velha cómoda e retirou uma quantidade enorme de desenhos, de esboços, de estudos. Andei à procura de um ou outro que me agradasse mais e perguntei-lhe o preço. Calou-se, olhou-me durante uns instantes e depois disse, leve-os todos. Todos? Fiquei assustado com o valor que iria pedir por aquilo tudo. Deu-me a sensação de queria ver-se livre da papelada, cartões e folhas cheias de pó. São vinte e cinco euros. Engoli em seco, nem deu para regatear. A maioria estava assinada, A. Caseiro. A curiosidade levou-me a querer a conhecer o autor, mas não tive sorte. Contactos, mais contactos, telefonemas e nada. Foi por mera casualidade que através de um pintor conhecido fiquei a saber um pouco sobre o anónimo criativo. Tinham sido muito amigos em criança e na adolescência. Como seria de esperar um excêntrico, com vida atribulada e bastante sedutora, na sua expressão mais lata. Depois, ao longo do tempo, o meu amigo do velhustro, começou a guardar velhas pastas com desenhos que lhe iam chegando e que depois caíam-me nas mãos por preços crescentes, mas mesmo assim muito acessíveis.
O velho amigo, também pintor, mas consagrado, desconhecia o paradeiro de A. Caseiro e nem sabia se ainda vivia. A última notícia datava de há alguns anos, disseram-lhe que tinha sido internado numa casa de repouso por causa da cabeça.
Há tempos, ao consultar um Caseiro, perguntei-lhe se não conhecia um outro com o mesmo nome e que era ou tinha sido pintor. Ficou a pensar durante alguns segundos, disse-me que tinha um primo afastado que fazia desenhos, julgava que estava internado, mas não sabia onde. Vou tentar descobrir e depois digo-lhe. Passaram-se mais uns meses até aparecer com um papel na mão. Era a direção da casa de repouso onde estava o primo afastado. Agradeci-lhe e fiquei de ir à localidade saber como estaria o senhor, mas, atendendo à informação de que estaria "mal da cabeça", fui adiando, até hoje, quando surgiu uma oportunidade. Participei na parte da manhã num debate e aproveitei a tarde para descobrir o local. Não foi fácil. Cheguei, identifiquei-me e expliquei ao que ia. Sim senhor, está aqui na instituição. Entrei, sentei-me, fui tratado com muita delicadeza e esperei menos de dois minutos até aparecer de braço dado com o diretor, que me tinha avisado de que não via bem por causa de uma trombose que teve há nove anos. Um senhor muito simpático, sorriso encantador, não revelando sinais de deterioração mental, que era o que eu temia. Disse-lhe ao que vinha, que provavelmente tinha em minha posse a maior coleção de desenhos dele, além de quadros, e que lhe queria testemunhar o meu apreço e admiração pela sua obra. O homem ficou estupefacto, nem queria acreditar no que estava a ouvir, dizendo constantemente que estava muito feliz, muito contente, nem se lembrava da última vez que sentiu tanto prazer. A conversa desenrolou-se de uma forma suave, descrevendo-lhe as suas obras, algumas das quais conseguiu identificar Tentei conhecer algumas particularidades da sua vida, sem entrar em muitos detalhes, mas "obriguei-o" a prometer-me que um dia destes irá contar muitas coisas. Riu-se, dizendo que o faria com muito prazer. Prometi-lhe que na próxima visita lhe traria as minhas pastas para ver os seus desenhos. O pior é que eu não vejo. Não vê? Pode ver mal, mas ainda consegue ver alguma coisa. Confirmei a minha afirmação ao escrever num papel o meu nome e contactos, numa letra maior do que é habitual. Caseiro conseguiu ler, embora com alguma dificuldade.
O belíssimo sol de inverno, que lá fora aquecia e alumiava a tarde, invadiu dois corações, o do pintor e o meu.
Caro Prof,
ResponderEliminarIsto de me pôr a escrever de olhos húmidos neste momento é coisa que se faça?! : )
Digo o mesmo, Catarina.
ResponderEliminarAnotei no meu bloco de notas.
Um gesto nobre a realçar uma generosidade imensa...
ResponderEliminarBonito
ResponderEliminarGostei.
ResponderEliminarTambém gostei.Bem haja.
ResponderEliminarBoa noite Prof. Massano. Também eu gostei e adquiri alguns desenhos de A. Caseiro. A minha curiosidade sobre o artista levou-me até ao seu blog. Gostava de saber mais sobre este pintor. Cumprimentos Ana Couceiro
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