São muitos os dias em que temos necessidade de lhes dar significado e tirar algum sabor. Habitualmente são os dedicados ao estranho descanso que mais angústia provocam, daí, muito provavelmente, a depressão inerente ao domingo à tarde, tão bem retratada por Namora numa obra com o mesmo título. Depois do almoço, em que foi patente a inércia de um dia de primavera acompanhado do barulho e conversas típicas de quem tem necessidade de almoçar, por enquanto ainda vamos tendo, senti o pulsar do tempo e o envelhecer do corpo. Para remediar os seus efeitos abalei sem convicção à procura de algo que me enchesse ou justificasse mais um dia de existência. O corpo estava minimamente compensado e abastecido para longas horas e o sol convidava a um pequeno passeio, o resto deixei à mercê do tempo e da fortuna. Acabei por tropeçar num estabelecimento aberto aos domingos onde sempre se podem ver algumas coisas, úteis e, sobretudo, inúteis, mas suficientes para, eventualmente, desencadearem apetência à aquisição de algo capaz de tranquilizar a alma, dando-lhe uma espécie de alimento ou de energia capaz de a entreter ou de ajudar a passar o tempo angustiante que me martirizava.
Vi um canto cheio de estampas e molduras, desengonçadas, sujas, algumas rasgadas, sem qualidade ou interesse nenhum, mas, mesmo assim, desafiou-me a espiolhar, quem sabe se no meio de tanta tralha inútil não apareceria algo que me enchesse as medidas ou fosse suficiente para despertar a minha atenção. O dia ia a galope e eu necessitava de algo para o justificar. Muitas vezes a única justificação que encontro é acariciar o tempo. Eis que, no meio da inutilidade concentrada, filha de um qualquer ser humano perdido por esse mundo, me deparei com um quadro a representar lírios. Não é que fosse de grande qualidade, mas tinha alguma beleza e despertava sentimentos de prazer. Olhei, toquei, apreciei e fiquei de olho nele. Peguei-lhe com medo de que alguém o adquirisse, como se ali, naquele espaço, e no mesmo tempo, houvesse um outro louco como eu à procura de uma justificação para um tarde primaveril. Não é que fosse impossível, mas era altamente improvável, porque para aquelas bandas adormecem alguns exemplares que ando a cobiçar há muito. Uma espécie de desafio, quero adquiri-los, mas não faço, aguardo que alguém os leve. O que é que eu ganho com isso? Nada, pelo contrário, por vezes até perco, porque ao chegar vou ver se ainda estão no mesmo sítio, e quando não estão arrependo-me de não os ter adquirido. Nessa altura ficam dissipadas quaisquer dúvidas sobre o meu real interesse. Paciência. Rapidamente desvaneço os meus sentimentos de frustração, descarregando sobre algo que me dê prazer.
Neste caso, quadro com um vaso de lírios, não deixei que testasse a apetência de outro. Uma ninharia. Às vezes, coisas interessantes e belas são etiquetadas com um valor desprezível. Depois fiquei na dúvida se o adquiriria por causa do baixo preço, da arte inerente ou do valor simbólico dos lírios.
Veio-me à memória a obra de Érico Verissimo, Olhai os lírios do campo, em que o título é justificado quase na parte final, quando Eugénio, médico, se lembra de citar Olívia, a sua colega, a sua amante, a sua dor, o seu passado, o seu fantasma constantemente presente, que, um dia, lhe citou uma passagem bíblica, "Observai como crescem os lírios: não fiam, nem tecem. Porém, digo-vos que nem mesmo o rei Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles". O impacto desta frase foi determinante para que o protagonista da obra passasse a ver o mundo de outra maneira, em que "a felicidade não é sinónimo de sucesso nem de conforto", mas sim de dedicação e empenho em favor dos outros. Não é por acaso que o lírio é, desde sempre, considerado como sinal de pureza e incorporado nas diferente mitologias como forma de expressão de nobres sentimentos humanos.
Num mundo angustiante é preciso deixar a mente permanentemente aberta para que possamos absorver novas fragrâncias, novas ideias e novos ideais, "não para ganhar a vida, mas para ter a certeza de existir".
Quem diria que ver "lírios", coisas simples, banais, fáceis de encontrar, provoca sensações diferentes, agradáveis e reconfortantes? Agora, sempre que puder, irei "olhar para os lírios do campo", através do quadro com lírios, um quadro simples, perdido, ignorado. Realmente nem Salomão se vestiu como um deles...
Caro Professor,
ResponderEliminarQue encanto, a prosa do Erico Veríssimo, no Olhai os Lírios do Campo, que suave perfume literário! Fez muito bem em recordar-nos esse grande literato brasileiro.
Caro Professor Massano Cardoso
ResponderEliminarSão as coisas aparentemente sem importância que ganham relevância, aquela que as circunstâncias ditam.
E também são as coisas mais simples e banais as mais agradáveis tal é a complexidade das coisas em que consumimos os nossos sentidos. Uma vez libertos e sossegados descobrem o que andava escondido. São os "lírios do campo"!
«Muitas vezes a única justificação que encontro é acariciar o tempo.»
ResponderEliminarSempre o tempo... e, acaricia-lo, sabendo como, é também uma forma de nos acariciarmos, de acariciarmos a vida e o que ela representa, a nossa e a de tantos que conosco partilham as suas...
Belíssimo poema, caro Professor!
“(…) Num mundo angustiante é preciso deixar a mente permanentemente aberta para que possamos absorver novas fragrâncias, novas ideias e novos ideais, "não para ganhar a vida, mas para ter a certeza de existir".(…)”.
ResponderEliminarPermita-me, Caro Professor, felicitá-lo por mais este texto
"jovem é aquele que se admira e se maravilha", dizia um poema sobre o dom da juventude como sendo uma atitude que não depende da idade mas desta preciosa capacidade de manter os olhos abertos para apreciar o que nos rodeia e as "novidades".
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