segunda-feira, 23 de abril de 2012

Sociedade kitsch

Uma vez as minhas filhas vieram dos escuteiros a contar que tinham feito um jogo muito difícil: tinham que se apresentar uns aos outros, como se não se conhecessem de lado nenhum, mas era proibido recorrer a dados objetivos, como a idade, a descrição física, onde viviam, a família que tinham, etc. Só podiam recorrer a dados subjetivos, indicando os seus valores morais e espirituais, contar do que é que gostavam, como reagiam a diversas situações, o que as emocionava ou não, enfim, um perfil com base no qual os outros tinham que adivinhar a sua identidade. Na altura fiquei a pensar que realmente era um exercício desafiante, de tal modo nos desabituámos de refletir e dar atenção aos valores morais, e lembrei-me deste episódio ao ler hoje o pequeno ensaio de Rob Riemen, “O Eterno Retorno do Fascismo”, (ed. Bizâncio) um trabalho muito interessante e perturbador, onde o autor refere a certa altura que a nossa sociedade é caraterizada pelo Kitsh porque tudo se orienta para a satisfação do prazer e tudo é avaliado em função do ego e da sua medida. “Um ego sensível como medida de todas as coisas”, diz o autor (pág. 61), “não suporta qualquer crítica e ignora a autocrítica. A nossa identidade também já não é a expressão de valores espirituais (de quem somos), mas de aspectos matérias: as nossas posses e o nosso aspecto. Podemos literalmente comprar a nossa identidade, adaptá-la e modificá-la. Por conseguinte, o constante impulso de comprar e possuir não é tanto uma manifestação de ganância mas antes o desejo de possuirmos uma identidade que possamos exibir perante um maior número de pessoas possível na expectativa de que nos achem agradáveis. (…)Agradável passa a ser a medida de tudo a que dedicamos o tempo: as nossas relações devem ser agradáveis, tal como os nossos amigos, os nossos estudos e o nosso trabalho. (…)”. As consequências desta superficialidade na política, na educação, no modo como encaramos a velhice e a morte ou na simples relação entre pessoas, permite apenas que esta fuga constante se sustenha no tempo efémero em que é possível manter as aparências. Mas, quando esta ilusão se dissipa, “o homem-massa sente despertar nele o ressentimento, o ódio e o rancor” (p. 64).
É muito interessante, e muito assustador, olhar a rápida evolução do mundo que conhecemos à luz desta breve análise, esperando que seja possível encontrar-se, ainda, uma transição não violenta para uma sociedade mais humanista e menos kitsch.

6 comentários:

  1. Uma frase atribuida a Robert Baden-Powell: «Se quero compreender as pessoas devo tentar escutar o que elas não dizem e, o que elas talvez nunca venham a dizer.»
    ;)

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  2. Ainda mais difícil, caro Bartolomeu!

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  3. Sem dúvida, cara Drª. Suzana; se pensarmos sobretudo, que cada ser humano possui características únicas, não deixando no entanto, de corresponder a um padrão universal.
    No entanto, percebemos hoje, que aquilo que até ha pouco tempo constituiu algo de superlativo, na forma como o futuro deveria ser projectado, está hoje a transformar-se. A sociedade, sobretudo as classes mais jovens reconhecem que o individualismo é cada vez mais prejudicial ao sucesso. E só não concordo inteiramente com o final da citação do texto do autor, porque a geração dos pais dos nossos jovens persiste e mantém viva a chama que não deixa os valores humanos extinguir-se. Isto, será o suficiente para que as gerações mais jovens reconhheçam a necessidade se reinventar, de se reestructurar e, aos poucos, encontrar o caminho certo, o caminho que desvaloriza a futilidade e a ausência de valores morais e humanos nas acções e nas decisões.
    Peno que o contacto real com a necessidade, que os jóvens de hoje estão a experienciar, produzirá em breve o efeito necessário, para que uma nova sociedade surja, muito embora alicerçada em princípios diferentes dos nossos, sem contudo deixarem de ser de maior valia.

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  4. Cara Dra. Suzana Toscano,

    Muito interessante esse jogo em que as suas filhas participaram, chegar à identidade de outrem apenas por dados subjectivos não é tarefa fácil, bem pelo contrário, exige um grande conhecimento do outro!. Mas isto só é possível em grupos com forte sociabilidade, onde os ideais e os princípios morais e éticos estejam enraizados, sem excepção.

    Mas na vida real nem sempre é assim, talvez porque somos educados a fazer e a dizer coisas agradáveis, mesmo que tenhamos de valorizar a superficialidade e a vaidade, e tudo por causa do nosso ego que exige sermos o centro das atenções…

    Quando, depois de tudo, não conseguimos satisfazer o pleno do nosso ego, ficamos desiludidos, e vem ao de cima aquilo a que o autor do seu livro se refere(acho eu!) quando diz :“o homem-massa sente despertar nele o ressentimento, o ódio e o rancor” ... e eu estou de acordo!

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  5. Caro bartolomeu, aí está uma perspetiva otimista, muito oportuna, de resto, pois temos a tendência para pensar que os valores são só os da nossa geração e que a geração seguinte não foi capaz de os absorver. Acho que é muito bem visto, eles, os jovens, lá saberão orientar-se também com aquilo que aprenderam com os seus pais. Esperemos é que consigam.
    Caro jotac, também é uma apredizagem, não é nada fácil aprender a valorizar o que não é material, ou adquirido, duas pessoas podem ter exactamente o mesmo curriculo formal e serem tão diferentes, a questão da identidade é essencial para que se saiba escolher os bons amigos em vez de nos contentarmos com aparências.Não quer dizer que não sejamos educados, agradáveis, uns para com os outros, o problema é se nos contentamos com o que é superficial e nunca se espera mais do que isso, não se dando valor a quem tem qualidades intrinsecas que podem naõ estar refletidas no seu BI social...

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  6. Suzana
    Interessante reflexão. Creio que o ter tem sido ao longo da humanidade, embora com representações diferentes, mais importante do que o ser. O progresso encarregou-se de sofisticar o ter e de relegar para um plano inferior o ser. Em nome do progresso perderam-se valores e tradições e também sentimentos que agora começam a fazer falta perante a crise. É uma crise do ter, em muito exponenciada pela ausência do ser, por sua vez secundarizado pelo ter fácil.
    Estamos num processo de mudança. Será que o que aí vem – que depende de nós - nos vai trazer a dimensão espiritual perdida?

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