A primeira vez que falei em público foi há muitos anos, ainda era estudante. O meu professor, responsável pela iniciação à vida académica, obrigou-me a preparar uma conferência. Levei a incumbência de tal modo a sério a ponto de ter passado semanas a estudar, a compilar e a sintetizar tudo o que na altura poderia obter sobre o assunto. Foi após a revolução de abril, na Figueira da Foz. Enquanto os meus amigos e colegas andavam entretidos com a revolução, eu tinha que estudar para não fazer má figura. No dia da comunicação estava aterrorizado. Sala cheia. Depois, à medida que ia falando, acalmei, só voltando a ficar nervoso no momento do debate. Fizeram-me algumas perguntas, sobretudo um cavalheiro antipático, barbudo, de voz forte, agressivo e arrogante. Fiquei irritado com aquela atitude e recordo-me de ter respondido à maneira, de forma direta, objetiva e muito seca, tão seca que até fiquei sem saliva. Quando cheguei a Coimbra, a meio da tarde, caí na cama e dormi profundamente. Sentia-me terrivelmente esgotado.
Depois deste episódio perdi o conto às vezes que falei. No entanto, tenho de confessar que me causa um certo transtorno ter de falar em público. Nunca sei como é que é que as pessoas irão reagir. Com o tempo, nas minhas áreas, as coisas simplificaram-se, ao conseguir traquejo e técnicas para me defender e proceder às apresentações. O pior é quando sou solicitado para falar fora do âmbito científico e académico. Não é nada fácil, é preciso usar uma outra linguagem, dizer as coisas de forma simplificada e que sejam compreensíveis para quem não está habituado a pensar ou a discutir no seu dia-a-dia sobre os mesmos. Eu sei que é um desafio, mas confesso que me faz recuar no tempo temendo que não só me apareça o tal barbudo arrogante eivado de um espírito revolucionário serôdio, ou que as pessoas fiquem frustradas por não compreenderem o discurso. Uma chatice. Só fico aliviado no final. Outra coisa que me preocupa é como estruturar a palestra. Se a escrever corro o risco de a cientificar em demasia ou, então, de cair em quaisquer excessos literários. Se não a escrever, corro o risco de não falar daquilo que gostaria, porque o fio condutor vai ser ditado pelo ambiente físico e humano. Às tantas devo ter alguma queda para o "cold reading", aquela forma de ler na face das pessoas, perscrutando-lhes pequenas reações que permitem "ver" o que vai na mente, sabendo se estão a entender, a concordar, a discordar, a ficar admirados, enfim, uma prática muito antiga, alvo de atenção redobrada nos tempos atuais, mas que nunca treinei. Assim, de acordo com os diferentes tipos de comportamentos faço os desvios necessários de molde a conseguir transmitir algo de novo, de interessante e que ajude, ainda que por breves momentos, a difícil arte de viver. É o que me vai acontecer daqui a pouco mais de uma semana. Trata-se da apresentação de um livro, não sou eu quem vai ter essa incumbência, mas convidaram-me para “botar faladura”. Que raio, pensei, mas porquê? Porque o livro é de uma senhora que fala da sua vida e experiência do lado de lá da doença. Uma doente bipolar. Oh diabo, respondi, mas eu não sou dessas áreas, não faz mal, é médico, gosta de escrever e queremos que fale. Mas falar sobre quê, sobre a doença? Aquilo que entender. E a conversa ficou por aqui. Agora é que vai ser o bom e o bonito. Não vou escrever nada, não vou usar cartões com algumas informações, vou sem nada nos bolsos, apenas com a cabeça, e o resto do corpo, claro. Pedi para ser o último a falar. Quero ouvir. Os meus neurónios, apesar de andarem comprometidos com outras preocupações, devem andar a tratar do assunto. De vez em quando fazem algumas propostas e eu vou registando-as. Já sei do que vou falar, vou abordar o tema "doença e criatividade", tentando demonstrar que a doença não é má na sua finalidade, em termos biológicos, e que a maioria da criatividade artística, cultural e, até, mesmo científica é o resultado de muitas perturbações ou desvios da normalidade do comportamento, que, nos dias atuais, são, frequentemente, alvo de medicalização excessiva. No fundo, irei fazer a apologia da "loucura". Às tantas vou fazer uma loucura, mas cada vez mais me convenço de que sem uma boa dose da mesma não conseguiremos ir a lado nenhum, porque para se ser criativo, e dar algum significado à vida, e obter algo em troca, é preciso ser-se louco ou, enfim, para ser um pouco mais comedido, meio-louco…
Neste mundo a ficar cada dia mais louco, seria irrelevante que o caro professor cometesse uma loucura, como forma de tornar o seu discurso mais entendível.
ResponderEliminarMas não, por aquilo que nos antecipa, o seu discurso irá certamente muito para além de praticar uma loucura; irá demonstrar a utilidade prática de todos nós praticarmos de quando em vez, uma loucura... uma loucura que nos torne conscientes da realidade, que nos obrigue a compreender a humanidade de que somos feitos e de que tão a miude nos olvidamos.
Tal como cantam os Goo Goo Dolls, a seguir: por vezes, é necessário que sangremos, para perceber que estamos vivos...
;)
http://www.youtube.com/watch?v=NdYWuo9OFAw
Muito bom ..clap clap clap.
ResponderEliminarA humildade é a mãe da criatividade.
Há muito que me interrogo sobre a razão desta minha meia-estagnação. Cheguei à conclusão que é devido a determinados papéis se terem invertido e ser agora cuidadora de uma “filha” muito mais velha que eu. Para sair desta fase, sem muitos danos psicológicos, deverei ficar meio-louca... Prefiro ser comedida. : )
ResponderEliminarFoi um prazer ler este texto. Como sempre.
A imaginação, a criatividade, a loucura cognitiva são muitas vezes ignoradas, espezinhadas pelo concreto técnico, esquecidos estamos que na vanguarda do progresso (mesmo nas áreas formais) está o sonho de barriga cheia de ideias fantásticas e desligadas do real,
ResponderEliminarCumprimentos