Lá estava ela
outra vez. Final de tarde, num dia de sol e temperatura amena. De olhar fixo e
parado, olhos grandes de muita doçura, agasalhada com um vestido comprido de
malha, demasiado quente para a época, composto com um lenço bem bonito,
amparada com uma mão numa bengala, mal segurando com a outra num saco de tela,
não se vislumbrando o que nele poderia estar guardado. De pé, parada, à esquina
de um cruzamento com semáforos e respectivas passadeiras, numa avenida de
Lisboa muito movimentada naquela hora, com automóveis e pessoas circulando de
um lado para o outro, de forma ordenada comandada pelas luzes ora verdes, ora
vermelhas.
Lá estava,
arrastando uma corcunda impressionante que, mais cedo do que tarde, não lhe
permitirá olhar à sua volta, tão só olhar para o chão, impedindo-a de fazer o
pouco que a sua infeliz condição ainda lhe permite, e transportando o peso de
90 anos carregados de abandono e solidão. Ali estava “cruzada” por uma cidade a
borbulhar de poluição, protegida e ao mesmo tempo vítima do seu reduzido mundo.
Um pequeno mundo esgotado na fragilidade da sua existência, à procura de sentir
gente, de ouvir as vozes de quem passa por perto, os cumprimentos de boa tarde
de vez em quando, uma ou outra buzinadela de um condutor mais ou menos mal
disposto, com ou sem razão, enfim, ali estava a fugir da agonia das quatro
paredes cinzentas dos dias que correm uns iguais aos outros, à procura do sair
do nada, de se sentir viva. E pelo caminho, a caridade de alguns que se abeirando
dela pensavam que a procura de esmola era a razão de ali estar.
Olhei-a de
frente por uns instantes, depois algum tempo pelo retrovisor até me desaparecer
do horizonte, mas não do pensamento. Dei meia volta, procurei um lugar de
estacionamento e fui ao seu encontro. Depois de uma conversa longa, se é que se
pode apelidar de conversa uma troca de frases e palavras incompletas e
interrompidas pela confusão de pensamento, falta de memória, desatenção e até
medo, vi-me vencida por momentos na intenção de a ajudar. Uma ajuda que ela não
poderia compreender naquele momento, não entenderia em meia dúzia de minutos
uma esperança de mudar de vida, como seria possível, se até
desejaria.
Confirmei que o
sofrimento, grande e insistente, dá muitas vezes lugar à falta de discernimento
e lucidez, características sem as quais não somos donos de algum do nosso
destino, talvez que seja a forma de quem sofre se defender da dor, da
confrontação com uma realidade indesejada, nunca prevista, castigadora, cruel.
Que sociedade é esta que permite estes sofrimentos, que não actua atempadamente
para os minorar ou evitar, que não tem respostas para lhes acudir? Porquê? Que
ideia temos como colectivo, como país, para corrigir estes terríveis
esquecimentos? São ideias como esta que fazem falta, não pensamos nas coisas
realmente importantes em torno das quais as outras que achamos serem as
principais encontrariam naturalmente uma solução…
Situações que acontecem mesmo em sociedades mais organizadas. Infelizmente.
ResponderEliminarAbraço, cara Margarida.
Cada um de nós é um mundo, que ao longo da sua existência vai construíndo com pedacinhos de outros mundos. Formam-no pedaços de mundos muito austeros, de mundos de felicidade e de tristeza, de mundos de dificuldades e de alegrias, de mundos de lágrimas e de risos, de mundos de conquistas e derrotas.
ResponderEliminarCada um de nós, chega em determinado momento, a um ponto em que vive num mundo tão diverso, que difícilmente se consegue identificar dentro dele, deixando de perceber o que é felicidade, o que é alegria e tristeza, deixando de lutar por objectivos e de os idealizar, limitando-se a existir da forma que essa existÊncia decidir.
A família e a sociedade, podem criar condições, voluntarizar-se no sentido de proporcionar a cada constructor de mundos, um lugar confortável, recheado de amor, de onde seja possível apreciar a obra que construiu ao longo da sua existÊncia.
Mas não é muitas vezes esse lugar e esse carinho que apaziguam a alma e os espírito do constructor de mundos. A sua ângustia deriva especialmente de perceber que não consegue acompanhar a azáfama dos constructores de mundos que à sua volta não param um instante. A sua ângustia deriva de perceber que o seu mundo, o mundo que construiu, se encontra já soterrado sob os consecutivos mundos que se vão sobrepondo ao seu.
A desorientação que lemos no olhar destes constructores de mundos, que encontramos nas esquinas dos passeios, os anseios que lhes tornam os olhares parados e os corpos imóveis, são o sinal de que estão simplesmente desorientados, porque não encontram o caminho que conduz ao mundo que construíram.
É como diz, Cara Catarina, infelizmente, mas não tem que ser assim em particular nas sociedades muito organizadas.
ResponderEliminarCaro Bartolomeu
Toda essa "desconstrução" se complica no meio do abandono, as forças para proteger a existência vão-se perdendo, a solidão toma conta do resto.
Uma sociedade tem que se organizar para a velhice e para a solidão, mas isso leva muito tempo, contámos tempo demias com as famílias, com as pequenas comunidades das aldeias e dos vizinhos, mas as cidades cresceram muito depressa, as famílias encolheram ou separam-se, o trabalho ocupa as mulheres que dantes ficavam a tomar conta primeiro dos filhos, depois dos pais, tudo mudou tão depressa que mal reparámos. O que conseguimos organizar é pouco e mesmo assim acorre a muita gente, mas não chega. Na Holanda, contou-me uma amiga que as pessoas se preparam a tempo para a altura em que são velhos e sós, mudam-se para bairros organizados, os filhos e netos ficam na cidade, em prédios com escadas e mais perto dos empregos. Não sei se é melhor, mas é organizado, o que nós vemos por cá é cada vez mais o que a Margarida aqui retratou e, mesmo assim, ainda há muitas famílias que se esforçam muito por cuidar dos seus velhinhos, mas cada vez são menos porque cada vez é mais difícil. Até nos prédios onde se mora anos a fio não sabemos quem são os nossos vizinhos.
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