Javier Esparza, neurocirurgião infantil, relata num editorial, no El País, a sua experiência de quarenta anos a tratar crianças com graves problemas, nomeadamente malformações do sistema nervoso central. A sua descrição da espinha bífida é dramática para todos, nomeadamente para as crianças, a ponto de perguntar se é ético obrigar um ser humano a sofrer tão violentamente. Esparza conclui que não, que não é ético, não é minimamente aceitável impor a alguém tamanho sofrimento. Ele sabe muito bem o que diz. O seu editorial prende-se com o facto de a corrente governamental pretender alterar a lei de aborto por motivos doutrinários. Nessa mesma edição, pode-se ler o relato de Gloria Muñoz a propósito da morte da sua filha que sofria de atrofia espinhal muscular tipo 1, que, aos setes meses de idade, após um sofrimento terrível, deixou de pertencer à humanidade. Gloria quer ter mais filhos. Sabe que corre riscos de lhe poder acontecer novamente, vinte e cinco por cento de probabilidade, mas admite que não tem pejo em abortar caso o filho sofra desta patologia.
Há dias, numa consulta vi uma jovem para efeitos de admissão ao trabalho. Das muitas perguntas que lhe fiz, recordo ter-lhe perguntado quantas vezes esteve grávida. Duas. Duas? Interrompi por momentos o interrogatório clínico e dirigi a conversa para os filhos. Era jovem e já com duas gravidezes. Perguntei-lhe, como é meu hábito, os nomes dos filhos, as senhoras gostam muito de falar sobre os seus rebentos, o que é normal, é motivo de justificado orgulho. Olha para mim e respondeu com visível tristeza: a primeira vez que estive grávida abortei e da segunda vez nasceu uma menina que morreu aos sete meses de idade. Engoli em seco. Não estava à espera. Calei-me, dando a entender que tinha ficado mudo de alma, a jovem compreendeu e continuou, chamava-se Mariana. Ao pronunciar este nome, senti um estranho e incómodo peso a cair-me em cima, a minha neta mais velha também se chama Mariana, o que fez com que uma série de associações e de lembranças adensassem ainda mais a atmosfera que eu próprio tinha criado com o objetivo de dar azo a protagonismo à jovem que se tinha deslocado à consulta. A senhora, com muita calma, começou a relatar a história da menina, que veio a falecer, tal como a filha de Gloria Muñoz, aos sete meses de idade, por atrofia espinhal medular tipo 1, a forma mais grave. Dia e noite foi o seu percurso junto da menina, até que a noite se abateu definitivamente sobre as duas. Tive o cuidado de prosseguir o exame, com algum tato e respeito pelo seu sofrimento. No final, julgando que estava a proceder bem, perguntei-lhe quando é que tentaria ter um novo filho. Respondeu-me a chorar: Foi ainda há muito pouco tempo, senhor doutor. É muito cedo. Fiquei embasbacado, não estava a conseguir fazer as coisas como devia ser, pensei que tudo se teria passado há algum tempo. A jovem apercebeu-se da minha perturbação e antes que pudesse pedir-lhe desculpa deu-me um abraço, como que a querer agradecer o meu cuidado, e disse, é a vida, senhor doutor, é a vida, mas não queria sofrer o que já sofri, é demais. Acredito que é demais.
Caro Prof. Massano Cardoso:
ResponderEliminarAgradeço que me informe se tem alguma objecção a que ponha o seu brilhante (mas pungente) texto como comentário noutros blogues em resposta a certas pessoas que defendem a proibição pura e simples da IVG (independentemente das razões), agora sob a oportunista desculpa de algibeira de que não se pode cortar nos cuidados de saúde e subsidiar esta prática.
Como é evidente, referindo a autoria e o local donde foi retirado.
Aurélia. Tudo o que publico pode ser utilzado por qualquer um.
EliminarUm abraço