“Perigosíssima para o futuro de Portugal”, “muitíssimo infeliz”, ”enorme erro”, “nem percebeu o que estava a fazer”. Eis algumas expressões com que vários economistas e gestores bem conhecidos qualificaram a decisão do Tribunal Constitucional (TC) de considerar inconstitucional a redução salarial nas Administrações Públicas e nas pensões de reforma consubstanciada no corte dos subsídios de férias e de Natal. Uma das razões por que concordo com todas aquelas expressões, e à qual me parece que não tem sido dada a devida atenção merecida, reside na (sobre)di-mensão da despesa pública portuguesa. Em 2010, os gastos públicos totais atingiram um máximo histórico superior a 51% da riqueza nacional; para este ano, apesar dos cortes programados, projecta-se um valor ainda superior a 48% do PIB. Valores excessivos tanto para a nossa realidade, como face ao conjunto de países europeus com que Portugal é habitualmente comparado.
Penso ser evidente que o problema da dimensão da despesa pública tem a sua extensão na esfera pública e não no resto da sociedade. Por outras palavras: não é lançando impostos adicionais que se combate a dimensão dos gastos do Estado – é cortando nesses mesmos gastos. Ora, uma análise à sua composição mostra que, sem actuar em três das suas rubricas (que, em conjunto, pesam próximo de 80% do total), não é possível reduzi-los como se exige: “prestações sociais” (que representaram mais de 45% em 2011), “despesas com pessoal” (mais de 23%) e “consumos intermédios” (quase 10%). Sobretudo as duas primeiras – dado o seu peso –, em que se encontram os salários e as pensões de reforma, aos quais foram reduzidos os subsídios. Portanto, descidas nas “despesas com pessoal” e nas “prestações sociais” eram inevitáveis para corrigir o défice público com uma contribuição maioritária das despesas – por indicação (correcta) da Troika, uma vez que a literatura científica sugere que, em geral, um processo de consolidação orçamental assente, na maior parte, na redução da despesa, é mais sustentável.
Os dados da Execução Orçamental até Junho – o primeiro mês em que um desses subsídios foi reduzido (o de férias, aos funcionários públicos) – confirmam a importância desta decisão para a queda da despesa, que está a descer mais do que o previsto: por exemplo, no subsector Estado (onde tradicionalmente existe o grande desequilíbrio entre receitas e despesas), na primeira metade do ano, a despesa total, a despesa primária (excluindo os juros da dívida pública) e a despesa corrente primária descem 2.2%, 5.4% e 3.5% em termos homólogos, contra objectivos de redução fixados em 0.9%, 4% e 3.1%. Esta evolução não permite interpretações dúbias: ao contrário do sucedido num passado recente, os gastos públicos não só estão a cair, como estão a cair mais do que o previsto. Ou seja, o Governo está a ser competente no seu objectivo de reduzir a despesa do Estado, não só face ao PIB, como em valor absoluto. Sim, as descidas de salários e pensões estão a ajudar – mas foi para isso que a decisão de os cortar foi tomada; e sim, trata-se de uma medida conjuntural – mas que permite ganhar o tempo necessário para que possam ser tomadas as opções que possibilitem emagrecer estruturalmente os gastos do Estado.
Claro que os esforços e os sacrifícios devem chegar a sectores ainda pouco ou nada afectados, como as parcerias público-privadas, cuja factura anual no Orçamento do Estado não poderá deixar de se adaptar aos tempos em que vivemos, seja pela renegociação dos contratos, seja (se tal não for possível) pelo lançamento de uma sobretaxa extraordinária sobre os resultados das empresas envolvidas. Mas deve igualmente ser evitado a todo o custo o lançamento de mais impostos, directos ou indirectos, sobre a economia (incluindo sobre o capital, que pretendemos atrair, e cuja tributação também já foi agravada). Se tal acontecesse (e longe vá o agoiro!...) as consequências seriam, como é fácil de perceber, (ainda mais) desastrosas para o crescimento.
Termino como comecei: o combate à dimensão da despesa pública deve e tem que ser feito cortando nos gastos do Estado. É esta a única alternativa para descermos a pesadíssima carga fiscal que sufoca a nossa economia, aumentarmos a nossa competitividade e atractividade, e começarmos a criar um dinamismo gerador de mais riqueza que, a prazo, potencie uma redistribuição (mais justa) do valor criado. É por isso que, mesmo com a decisão do TC, as rubricas “despesas com pessoal” e “prestações sociais” não poderão deixar de ser afectadas. E é também por isso que, por mais voltas que dê, não consigo encontrar qualquer sentido nesta decisão, que envia uma mensagem errada aos agentes e, além disso, mina a confiança internacional que Portugal está a conseguir recuperar (qual poderá ser a reacção do poder judicial a outras medidas que eventualmente sejam tomadas para enfrentar a situação de emergência que enfrentamos?)… Acima de tudo, faltou bom senso ao TC. O que, em qualquer situação, é sempre lamentável. No caso concreto e, para mais, na situação de emergência que Portugal vive, é imperdoável.
Publicado ontem, quarta-feira, 1 de Agosto de 2012, no Jornal de Negócios.
Só dois pequenos detalhes Miguel nesta sua opinião que gostava de apontar e seguirá se quiser:
ResponderEliminar- não chame "literatura científica" aquelas coisas empíricas que os economistas produzem. Chame-lhe "estudos", mas não lhe chame ciência que não é;
- quando fala das parcerias, sugiro que fuja à facilidade de meter tudo no mesmo saco de classificar como parceria aquilo que é de facto e aquilo que foram meros artifícios contabilísticos de contrair dívida fora do livro do estado. As últimas correspondem a trabalho que já foi feito, inclusivé por si, que não ser pago é roubo puro e simples.
Caro Deputado Miguel Frasquilho,
ResponderEliminarDesculpar-me-á dizer-lhe que insistir neste assunto, é reconhecer a falta de novas ideias de quem as deverá ter por inerência do cargo.
Toda a gente já sabe que:
-(i)se o estado não pagar aos trabalhadores da função pública a despesa fica aneurética;
-(ii)se acabar com o estado social, também;
-(iii)se retiver os subsídios, menos mal, embora não resolva o problema...
Mas a questão é que o TC decidiu que o que era menos mal para uns era muito mau para outros, por isso, não me parece razoável criticar a decisão do TC, culpando-o de falta de bom senso, só porque a decisão não agrada.
É a lei que está mal, mude-se!...
Caros,
ResponderEliminarObrigado pelos vossos comentários.
Caro Tonibler, para mim é oiteratura científica... :-)
Caro jotaC, nunca me passou pela cabeça que o TC decidisse desta forma... acima de tudo, e como refiro no meu texto, faltou-lhes bom senso. E isso, em minha opinião, e para mais na época de emergência que vivemos, é imperdoável...
Meu caro Miguel, percebo bem o alcance e a razão de ser da opinião que expressa. Acontece que os tribunais não julgam segundo o bom senso mas à luz do Direito. O Tribunal Constitucional não é (ou pelo menos não deve ser) exceção. É à luz do direito constitucional e não de acordo com a conveniência e necessidade conjunturais, que deve ser feito este debate.
ResponderEliminarSe o Direito não é ajustado à realidade, mude-se o Direito - que neste caso significa ter-se a coragem de se rever a Constituição - não se apele a uma sensata interpretação contra constitucionem.
Não quero com isto dizer que me identifico com os fundamentos da decisão do tribunal constitucional. Mas as minhas discordâncias situam-se no plano jurídico, no quadro da lei que existe.
Percebo o que diz, José Mário, e concordo juridicamente falando, claro... Mas continuo a achar que o bom senso deve sempre imperar. Os cortes decididos correspondem a cerca de 14% por mês, em média... E se o Governo tivesse decidido cortar estes 14% em cada mês e não os subsídios?... Como teria decidido o TC?... Já seria constitucional?... É que José Sócrates, por exemplo, cortou 5% em média... Qual a percentagem de corte acima da qual este passa a ser inconstitucional?...
ResponderEliminarCorrecção:
ResponderEliminarCada vez que me falam em cortes de subsídios fico "aneurético", invento palavras...
"Anorética", claro :)