domingo, 12 de agosto de 2012

"Apanhado da Lua"

Há certas pessoas com as quais não simpatizamos, e não é por motivos preconceituosos, mas sim devido a determinados fenómenos muito complexos a que não é estranho certas estruturas cerebrais que conseguem "ler" sinais de perigo que nos escapam de forma consciente. O senhor entra e dispara: Você tem de resolver este problema, eu não posso continuar assim. Nem boa tarde, nem senhor doutor, nem nada."Você", uma palavra que me irrita sobremaneira. Nem me deixou perguntar o que é que se passava, embora não me fosse difícil descortinar qual o problema, porque já o tinha consultado em tempos. Olhe lá, então a medicina não consegue ver o que se passa no meu estômago sem ter necessidade de fazer uma endoscopia? Que raio de medicina é a vossa, tão desenvolvida, tão desenvolvida e não tem uma alternativa! O registo do discurso foi sempre no mesmo sentido, desprezo e tentativa de humilhação da profissão. Tive de colocar a minha cara número um, a mais solene possível, usando todos os cuidados para não ter de responder à maneira, e eu sabia o que é que ele merecia. Um doente arrogante, doente, mas, também, um perfeito chato.
Este caso fez-me recordar outros em que o sucesso acabou por ser atribuído a bruxas, graças ao conselho de uma comadre, a santos e à Nossa Senhora de Fátima, estes últimos são pagos em estearina, peregrinações e ex-votos, enquanto o insucesso é invariavelmente culpa do médico. Mesmo nos dias de hoje, a superstição, as crenças populares e a "medicina popular" estão enraizadas nas almas dos portugueses. Quantas e quantas histórias poderiam documentar esta afirmação!
A conversa continuou e não me foi difícil perceber, até porque já tinha outras histórias, que o doente em questão já deveria ser assim desde há muito, às tantas desde criança. Ainda estive tentado a perguntar-lhe se a mãe por azar não o terá mostrado à Lua, porque uma criança apanhada da Lua é triste, não tem robustez, nem vigor e acaba num chato de primeira apanha. Porra, porque é que a mãe não lhe espetou na boca quando nasceu a loquinha, uma preparação de mel e gema de ovo. O mel tem a virtude de as tornar segredeiras e a gema de ovo, engraçadas. Resta referir que o indivíduo não tem graça nenhuma, foi mal talhado, só pode e eu tenho de o aturar. Valha-me Santo António ou a Nossa Senhora, mas não querem nada comigo, tomara, eles lá têm as suas razões, bem podiam tratá-lo e ficarem com todos os louros, eu até pagava por cima, mas qual quê! Farto, mas mesmo farto da conversa, disse-lhe: Olhe, o melhor é tomar isto, uma cápsula ao deitar, enquanto não se decidir a fazer o exame ou até o senhor descobrir um outro que o substitua, está bem? Que raio de prescrição está a fazer, a minha médica(!) diz-me que este medicamento só se deve tomar de manhã, "vocês" não se entendem, pois não? Um estranho fervor começou a queimar todos os pontos do meu corpo, a ponto de ficar à beira de uma erupção vulcânica tipo piroclástica. Tive que dizer que não discutia critérios clínicos com ele, só com um colega. Nem sei como consegui aguentar tamanha desfaçatez e humilhações. O senhor não é destituído, é apenas um aluado, só pode ser, mas por que carga de trabalhos não vai à bruxa, a um homeopata ou a um santo qualquer da sua devoção?

6 comentários:

  1. Não vai porque pode ser aluado e mal educado mas não é trouxa :)

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  2. Anónimo02:17

    Caro Professor, muito interessante o que acaba de relatar (devo dizer que nunca me passou pela cabeça que alguém doente fizesse uma coisa dessas num consultorio médico) e muito de louvar o seu estoicismo em não ter corrido com o homenzucho do consultório a pontapés. O que me leva a uma pergunta. Pode um médico simplesmente recusar-se a aturar um paciente? A alguém como esse que acaba de relatar simplesmente dizer "Saia! Não estou interessado em ser seu médico. Bom dia."

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  3. Caro Professor Massano Cardoso
    O que os médicos têm que aturar! (às vezes os doentes também apanham com cada médico). Não sei como aguentou uma tal arrogância. "Aluado" é pouco para classificar tamanha criatura!

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  4. Como eu entendo bem o Professor! A grosseria é algo que começa a ser endémico na sociedade portuguesa, a começar no "você"...

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  5. «...mas por que carga de trabalhos não vai à bruxa, a um homeopata ou a um santo qualquer da sua devoção?»
    Então,se ele sabe que tem um Salvador que o atende... para que ha-de perder tempo e feitio com outros?!
    ;)))
    Mas deixe-me dizer-lhe, caro Dr. Massano, que existem situações que dão ao doente a sensação de que foi o médico que bateu com a cabeça na Lua.
    Mas... retiremos a Lua destas questões... ela exerce efeitos magnéticos sobre a Terra e os seres que a habita, mas esses efeitos diferem de indivíduo para indivíduo.
    Quando o meu pai teve o primeiro AVC, dirigi-me ao hospital da zona de residência, o S. Francisco Xavier. Ficou em observação, não lhe era identificado nenhum simnal de doença, nem após a realização de exames. No final do dia, falei com o chefe da equipe, também ele Professor, que me garantiu não existir qualquer problema com o meu pai. Não teria passado de uma indisposição e que bastaria repouso. No dia seguinte, voltei a conduzi-lo às urgências do hospital, não mantinha o equilíbrio e achava-se nauseado. O processo repetiu-se, novos exames, novas análises e na conversa final com o médico responsável notei um certo tom de maçada, quando me referiu; o senhor já esteve ontem nas urgências com o seu pai...
    -Sim estive, mas na realidade o meu pai, quanto a mim piorou.
    -Não pode ter piorado porque o seu pai não tem qualquer problema, precisa somente de repouso, pode ter alta.
    Hmmm... este percebe tanto disto, como eu de lagares de azeite, pensei. Meti o meu pai no carro, e dirigi-me ao médico aqui da aldeia, que consulto sempre que necessito. Liguei-lhe pelo telemóvel, pedi-lhe para ver o meu pai, que já ía a caminho com ele.
    Quando entrámos a porta do consultório, de um lado amparava o meu pai para lhe ajudar na marcha, o médico, sentado à secretária, olhou para o meu pai e diagnosticou imediatamente, só "a olho": Éh pá, o teu pai fêz um AVC!
    -Um AVC? Então eu venho de S. Francisco Xavier, foi visto por 2 equipes, fez TAC, ressonância, análises, etc e dizem que ele não tem nada?!
    -Pois é... deita-o aí na marqueza e descalça-o.
    Retirou uma esferográfica do bolso da bata e começo a riscar a sola do pé do meu pai, primeiro um, depois o outro. ~
    -Não ha dúvida pá, o teu pai fez um AVC. Agora vais xom ele fazer análises, um TAC, um ECG e depois voltas cá para o medicar.
    Depois de ver o resultado dos exames disse-me; olha, o cérebro do teu pai parece um queijo suiço, nem percebo como é que ele ainda está tão bem, mas o coração está fraco, precisa colocar um pace-maker. Vais com ele ao hospital, falas com o médico de cardiologia e dizes que ele precisa do aparelho.
    -Ah bom, deve ser verdade... o Dr. pensa que aquilo é como Pingo Doce, que se entra escolhe e paga à saída?!
    - Deixa estar que eu escrevo uma carta para apresentares ao cardiologista e não demores, é urgente!
    No dia seguinte, dirigi-me de novo ao hospital com o meu pai, falei com o chefe da equipe das urgências, apresentei-lhe a carta do colega, leu e no fim diz-me: o seu pai pode baixar e ficar em observação, depois o cardiologista vai decidir se o caso dele justifica colocar ou não o pacemaker. E assim foi... passado 3 semanas, lá lhe colocaram o pacemaker. Quando o acompanhei à primeira consulta pós-operatório, diz o médico que o operou com um ar todo pimpão; então o senhor agora está um rapaz novo, o seu coraçãozinho está aí afinado como um relógio suiço.
    Respondi-lhe eu, sem o menor ar de satisfação; olhe Sr. Dr. depois de duas altas do serviço de urgência, quando o meu pai tinha feito um AVC e depois de 3 semanas à espera de uma decisão de colocar um pacemaker, vindo o meu pai acompanhado do resultado de vários exames que o justificavam... já começava a pensar que a finalidade dos serviços deste hospital era a de promover a morte dos doentes.
    Enfiou o nariz na ficha do doente e nem me respondeu.

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  6. Zuricher, pode recusar-se, mas não é fácil, encontramos sempre uma ou outra explicação para a atitude menos correta. Ao longo da minha vida só me aconteceu uma única vez e não foi propriamente uma recusa. Fui a casa de um doente. Era um jovem com problemas psiquiátricos, mas perfeitamente compensado, na altura não era a doença que se estava a impor, mas sim o seu carácter. Falei com ele, examinei-o e no final prescrevi-lhe um fármacao. Acontece que em matéria de fármacos psicotrópicos o doente devia ser mais especialista do que eu! Ficou indignado porque com aquele sabia que não iria obter nenhum efeito. Expliquei-lhe tudo e mais alguma coisa, dizendo que não podia, nem devia prescrever outro medicamento porque não se justificava. Qual quê! Não sei quanto tempo estive a argumentar, mas ele sempre com desdém, com soberba difícil de descrever. Além do mais nada jusrificava que eu fosse a sua casa, num pequeno povoado, fi-lo porque tenho algum respeito pelo pai, que deve passar as passas do Algarve. Às tantas, senti uma raiva a invadir-me, agarro na receita, pego na mala e sai disparado daquele espaço. Nem imagina a minha indignação. Quanto ao resto, enfim, já ouvi e vi de tudo, ou quase.
    Bartolomeu. Já conhecia a sua história e presumo que já a comentei. Reconheço que por vezes há uma certa sobranceria e desvalorização de certos casos que, inicialmente, não são tão floridos a ponto de permitir fazer um diagnóstico. Lidamos com probabilidades e como tal existe sempre a possibilidade de errar, sem entrar em conta com a forma de ser o médico, a qual, se não se encaixar em determinados parâmetros aumenta naturalmente o risco. No caso de certas patologias, o médico que vem a seguir a um outro que viu o doente numa fase inicial é "privilegiado" porque depois já tem mais sinais e sintomas que lhe permite, inequivocamente, fazer o diagnóstico a olho. Tenho muitos casos desses, mas, mas também, infelizmente, dos outros, situações que me passaram entre os dedos e que não fui capaz de diagnosticar, porque se confundiam com coisas banais, e nestes casos é muito provável que cometamos erros. É lamentável? É! Mas para quem não lida com certezas nem verdades absolutas acontece, infelizmente.

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