sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Finalmente, BCE?...

Tenho sido bastante crítico da actuação e da postura do BCE perante a crise que a Zona Euro enfrenta. A autoridade monetária europeia tem-se mantido firmemente ancorada e restringida ao seu mandato de garantir a estabilidade de preços (definida como uma inflação não superior a 2%), não tendo agido como devia para garantir a estabilização financeira, quer dos Estados que formam a Zona Euro, quer ao nível do próprio sistema financeiro. Em particular, estando impedido pelos seus Estatutos de intervir nos leilões de dívida pública no mercado primário (como acontece com o Fed, o Banco de Inglaterra ou o Banco do Japão, por exemplo), o BCE nunca actuou como lender of last resort (credor de última instância) informal no mercado secundário (de dívida já existente) – o que os bancos centrais acima referidos já fazem em caso de necessidade (e que os mercados sabem que acontece e confiam – levando a que, na prática, esses bancos centrais ou tenham que intervir muito limitadamente ou nem sequer o tenham que fazer de todo).

Aliás, mesmo quando (desde 2010) comprou dívida pública no mercado secundário (dos países sob fogo dos mercados), o BCE fê-lo de forma intermitente, e sempre com uma postura reticente e contrariada… O mesmo sucedeu quando anunciou, em Dezembro de 2011, duas operações de refinanciamento com um prazo de 36 meses e um juro médio ajustado à principal taxa directora (a taxa refi), que inundaram de liquidez o sector bancário europeu e criaram condições para que os bancos pudessem voltar a comprar dívida pública (a Long Term Refinancing Operation, LTRO), a falta de entusiasmo continuou a ser marcante. Como se não o quisesse fazer mas pronto, lá tinha que ser… E a cereja no topo do bolo veio em Maio último, quando o BCE anunciou – aí com uma postura bastante mais afirmativa e, digamos, satisfeita, do que anteriormente – que não tinha planos para implementar quaisquer medidas destinadas a contrariar a volatilidade nos mercados financeiros; que não iria intervir até pelo menos Julho e que iria rever a eficácia de medidas passadas. Numa altura em que as tensões no mercado de dívida pública afectavam já largamente os juros cobrados a Espanha e Itália, imagine-se!...

Foi, por isso, inesperado (pelo menos para mim) – mas muito positivo – ouvir, na semana passada, Mario Draghi, referir, numa conferência em Londres, sem papas na língua e de forma convincente, que o BCE vai fazer o que for necessário para preservar a Zona Euro”, tendo ainda juntado um inédito "acreditem em mim, será suficiente". Sem surpresa, os juros da dívida pública de Espanha e Itália (os casos mais problemáticos na Zona Euro) caíram a pique e as bolsas europeias dispararam.

Falta, agora, saber como se traduzirão, na prática, a mudança de postura de Draghi e estas suas declarações. Porque se o primeiro efeito psicológico foi positivo (até pela surpresa, depois do histórico conhecido), é preciso mostrar algum “serviço” para convencer os mercados de que o BCE estará realmente “lá” quando for preciso. Que serviço? Mais importante do que qualquer nova descida das taxas de juro, e como já tantas vezes tenho defendido no passado, actuar como lender of last resort no mercado secundário de dívida pública, o que – como aos outros bancos centrais – lhe é permitido pelos seus estatutos.

Ao dizer o que disse na semana passada, Draghi colocou a fasquia demasiado alta. Num point of no return, digo eu – e ainda bem. Porque, mesmo conhecendo a oposição do Banco Central Alemão (o Bundesbank) a uma intervenção do género da acima referida, corro o risco de considerar que Draghi não teria dito o que disse se não tivesse a certeza de o poder fazer. A forma é irrelevante[i], desde que seja convincente e restabeleça, enfim, a confiança dos investidores na Zona Euro, essencial para que a normalidade financeira e económica possa regressar. Algo que só um banco central, com o seu poder de fogo ilimitado (a “grande bazuca” que é poder emitir moeda sempre que necessário) pode garantir. Terá o BCE finalmente acordado?... Quero acreditar que sim, mesmo que com enorme atraso. Mas enfim, lá diz o povo, mais vale tarde do que nunca…

Nota: Este texto foi escrito com informação disponível até quarta, Agosto 01, 2012.



[i] Por exemplo, anunciando um tecto nos spreads dos juros dos títulos de dívida pública de países na mira dos mercados (como Espanha e Itália) face às taxas alemãs (o que garantiria um limite mínimo para o preço desses títulos, que têm uma relação inversa com os juros). Um tecto suficientemente equilibrado que não tornasse insustentável o financiamento desses países nos mercados mas que, ao mesmo tempo, funcionasse como incentivo (e forma de pressão) para que os Governos em questão reduzissem o respectivo endividamento (cumprindo as metas orçamentais previstas) e realizassem as reformas com que se comprometeram (não estaríamos, pois, em presença da chamada “monetarização dos défices públicos”). Um tecto entre 250 e 300 pontos base, acima do qual o BCE interviria automaticamente, por exemplo, cumpriria ambas as funções. E, como é do poder de fogo infinito de um banco central que estamos a falar (a emissão de moeda), é muito provável que, paradoxalmente, esse mesmo poder de fogo fosse usado muito limitadamente ou nem o fosse de todo (não se colocando, portanto, sequer, a questão das indesejáveis e temidas pressões inflacionistas).

Uma decisão deste género, anunciada pelo BCE e sem a intervenção (pelo menos visível…) dos decisores políticos teria, ainda, a vantagem de – como deve ser, no caso de um banco central – não danificar a sua independência e credibilidade.


Publicado no Semanário Sol em Agosto 03, 2o12.

3 comentários:

  1. Não estará este seu artigo desfasado no tempo face às últimas declarações de Draghi?
    não seria melhor crrigir o título do Post para " FINALMENTE, BCE?...NA MESMA!

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  2. Meu caro,
    O tempo do BCE não se esgotava ontem... :-) Embora tivesse ajudado que tivesse passado das palavras aos actos. Para já, as palavras mudaram (uma muito maior objectividade e assertividade) e isso já me parece bastante positivo. E o que defendo - e já há muito defendo - tanto podia ter sido feito ontem, como mais tarde, em Setembro... Espero que cheguemos todos financeiramente vivos até lá... :-)
    Obrigado.

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  3. Miguel,


    o BCE tem vindo a aceitar créditos dos nacionais como colaterais para a cedência de liquidez dos bancos o que está de acordo com o facto de ser um banco central europeu, aceita o risco associado ao agregado dos portugueses mas não o risco do estado português que, não sei porquê, mas está a custar a entrar na cabeça das pessoas que cada vez mais não são a mesma coisa.

    E isto parece-me o papel de qualquer banco central. Tal como não me parece que o Banco de Portugal aceitasse créditos da Câmara Municipal de Felgueiras ou de Gondomar como colateral para liquidez no tempo do escudo é perfeitamente razoável que o BCE não aceite OT's da república como colateral ou ande a comprar esse lixo. Tal como não me parece que o FED ande a comprar obrigações da república da Califórnia ou do Texas (não faço ideia).

    Por isso acho que o BCE tem agido correctamente e no âmbito para que foi criado. Há cidadãos europeus e empresas europeias que trabalham e essas estão a ser apoiadas. Os estados, pois, esses vão ter que começar a mostrar trabalho.

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