Há coisas que não esqueço, porque é impossível olvidar frases ou explicações que esculpiram o pensamento de uma criança de forma lapidar, obrigando a construir misteriosas fantasias.
Numa tarde de sol, sentado no chão com a restante canalha, ouvíamos da boca doce e monocórdica do padre a criação do mundo. Era o último dia da Criação. Deus lembrou-se de agarrar num bocado de barro e soprou-o dando vida ao primeiro homem. A forma solene, simples e sincera de uma personagem prestigiada, como era o padre, fez-me acreditar, pelo menos nos primeiros instantes, que a história seria verdadeira. Recordo ter imaginado um pedaço de barro, idêntico ao que os oleiros usam para fazer as cântaras, a rodar, enquanto as "mãos" do Criador lhe davam forma humana. Depois, no final, soprou-lhe na boca e a estátua de barro adquiriu vida e movimento. Não atribui qualquer representação a Deus, por uma simples razão, como não havia ainda homens e mulheres não lhe podia atribuir qualquer forma, no fundo usei uma capacidade, abstração, que desconhecia possuir, mas fui capaz de "sentir" o vento da vida a entrar pelas ventas e pela boca do boneco de barro. A partir daí, sempre que via terras barrentas ou barro a ser utilizado ficava seduzido por tão estranha matéria, porque associava-a imediatamente com a vida, mesmo depois de por em causa a criação, que não demorou muito. Nessa mesma tarde, e na continuação da prédica, desta feita com a produção da Eva através de uma costela, fiquei mais do que desconfiado e irritado. Mesmo assim não foi suficiente para apagar o meu quadro mental da criação de Adão, que ainda hoje consigo reproduzir com fidelidade. Ainda bem que não me esqueci deste episódio e dos seus efeitos.
Ao longo da existência, sempre que esbarro em determinadas estatuetas de barro, revivo aquele episódio.
Olho para uma pequena figura de mulher, triste, aparentemente apagada, vida de sofrimento, de dor, de pobreza, de luta inglória, embrulhada numa capa como a querer esconder o passado, não de si, mas dos outros. Tocou-me. Alguém lhe tinha soprado vida. Passados uns tempos, voltei ao mesmo local, como se esse alguém me estivesse a chamar. Deixei-me ir ao sabor do encanto, não tenho receio das sereias. Entrei e lá estavam, ao canto, meio escondidas, duas mulheres de negro, negras de barro e negras de alma. Passaram a estar juntas. Sei que conversam, uma conversa silenciosa, em que recordam sofrimentos da peste, da guerra e da fome, ceifeiras de filhos e de amantes. O negrume dos seus corpos não são mais do que esperanças de vidas carbonizadas a quererem afogar ténues brasas de alegrias e de prazeres, que, só com muito esforço, julgam recordar, breves estrelas cadentes do passado a iluminar almas tão secas como as madres dos seus ventres, que deram outrora vida a outras alminhas. As três sentem que estão na iminência de em breve o sopro da vida as abandonar, mas estão enganadas, porque há quem ainda queira soprar e atiçar as brasas das alegrias e dos prazeres. Afinal a vida não é mais do que um pedaço de barro a que basta soprar...
Gostei imenso de ler...
ResponderEliminar«Afinal a vida não é mais do que um pedaço de barro a que basta soprar...»
ResponderEliminarEntão; sempre falava verdade, o padre da sua meninice, caro Professor?!
;)
BARTOLOMEU
ResponderEliminarPois! Soprar com as mãos, com a alma, com o desejo, com a inquietação, com a felcidade. Sopros...
Lindo!
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