Dia de finados. Aproveitei para descansar. Fiquei na terra, saboreei o ar, respirei o frio e lembrei-me dos conhecidos e dos partidos. Uma deliciosa sensação de paz inundou o meu espaço, quase que diria que a lembrança da morte despertou um agradável sabor de vida. Os contrastes surgem em determinadas ocasiões, só é preciso estar atento. Eu estive. Hoje, a simpatia pairava em todos os locais por onde passei. Hoje, uma estranha, enigmática e discreta alegria brotava generosamente de todas as pessoas com quem me cruzei. Nada de ansiedade, nada de temor e nada de dor, apenas tranquilidade e uma serenidade que há muito não via, nem sei se alguma vez vi tal coisa, mas hoje vi e senti. Que estranho! O ar, a água da ribeira e as folhas das árvores estavam felizes. Que estranho! As pessoas sorriam e diziam coisas bonitas, inesperadas e cheias de ternura. Paravam, cumprimentavam-se e brincavam. Não vi um ar carrancudo, não deslumbrei ansiedade, nem ar de tristeza, até mesmo aqueles em que a doença grassa, por vezes sem piedade, demonstravam confiança e esperança nas palavras que ouviam, como que aliviadas. Chamou-me a atenção velhas árvores, minhas conhecidas, que ao longo do ano gostam de mudar de aspeto. A que estava à minha frente, grandiosa, elegante, parecia mesmo ter acabado de sair da cabeleireira, cheia de belas madeixas. Daqui a umas semanas vai pintar o cabelo de vermelho e haverá alguém que o cortará à Mirreille Mathieu. Safada. Sabe que estamos no outono e gosta de se mostrar como uma quarentona toda aperaltada. Ouvi ao meu lado que é pena as árvores ficarem assim nesta altura. Pena? Qual quê! É a mais bela manifestação da natureza, cheia de cores, cores que não vimos em mais nenhuma outra altura do ano. Eu adoro esta estação, mesmo que anuncie a morte, porque a natureza sabe ressuscitar. Olha para elas, já estão a pensar em renascer cheias de vida na próxima primavera, mas antes dão-nos o mais belo espetáculo, uma morte colorida, suave e tranquila. Não há nada mais belo. E logo hoje, dia dos mortos. Subo a velha escadaria de pedra e vejo a romãzeira carregada de frutos no meio do pequeno jardim. Estava tão linda. Não me recordo quando foi, mas um dia apaixonei-me pelas suas flores, cor única, de uma beleza divinal e tranquilizadora. Aproximei-me, saltei o pequeno muro e aliviei-a de alguns dos seus frutos reais. Muitos estavam abertos, mostrando um ventre cheio de suculentos e vermelhos bagos, um delicioso contraste com as suas folhas verdes. Num momento de morte, a romãzeira mostrava a essência da vida. Uma das romãs estava já aberta e retirei-lhe alguns bagos. Soube-me tão bem. Depois, até casa, e no meio da rua, fui saboreando bago a bago. Em casa, sentado na varanda, continuei a comer um a um. O tempo corria lentamente e as pessoas também passavam lentamente, mas sempre a sorrir, e diziam qualquer coisa, coisas bonitas e simples. Eu continuei a comer os bagos da romã, um a um, olhando para o que se passava em redor. Ainda me lembrei de os contar, mas perdi-me na contagem, não sei se são ou não os tais 613, o número dos preceitos da Torá, não importa, o que importa é que no dia de finados, num belo dia de outono, em que a morte das árvores se faz sentir, há vida, há esperança, há beleza e há paz. A minha romã é testemunha disso.
Alimentei-me de vida.
Alimentei-me de vida.
Espero que a romã fosse tão deliciosa como este texto...
ResponderEliminarUm texto liiiiindo! : )
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ResponderEliminarLindo, grande sensibilidade!
Por que razão os nossos melhores escritores são médicos?
O comentador Bonaparte faz uma boa pergunta.
ResponderEliminarE o “nosso” muito estimado médico – que pretenciosismo! - distingue-se de entre os demais.
Viver é procurar alguma forma de reconhecimento, o melhor alimento das nossas almas. Quando as nossas palavras conseguem despertar emoções ou sensações, somos capazes de saborear finas fatias de felicidade. Uma forma de ser que nos torna ainda mais humanos. E bem precisamos, pelo menos eu necessito. Viver no meio do sofrimento obriga-nos a conhecer a realidade mais profunda de qualquer ser humano. Não se vê só o corpo, não se sente só a dor, vê-se a alma desnudada, sofredora, angustiada, à procura de ajuda, de compreensão, de amor, e acaba-se por conhecer a força da terapêutica da palavra, uma das mais poderosas armas para curar e aliviar os outros. Basta estar atento e ouvir. É isso, basta ouvir, é preciso saber ouvir. Ouve-se tantas coisas, coisas que nem Deus consegue ouvir....
ResponderEliminar«O tempo corria lentamente e as pessoas também passavam lentamente, mas sempre a sorrir, e diziam qualquer coisa, coisas bonitas e simples.»
ResponderEliminarNão é esse clima que vejo à minha volta. Vejo cada vez mais pessoas na miséria e uma revolta cada vez maior. Que não demore...
Olhe Diogo, eu compreendo o que o senhor quer dizer, mas naquela tarde, naquele lugar, numa tarde de dia de finados, eu vi «O tempo corria lentamente e as pessoas também passavam lentamente, mas sempre a sorrir, e diziam qualquer coisa, coisas bonitas e simples.». Compreende?
ResponderEliminarSim, acho que "sentimos" este belo momento que tão bem descreveu. Tem que haver paz nalgum lado, nalgum momento, sem isso a vida é impossível. Adorei a imagem da árvora de cabelos pintados cortados à mireille mathieu :) Um abraço e espero que tenha feito um desejo ao comer a romã!!
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