Uma entrevista que vale a pena ler - fala o médico e fala o homem - que nos ajuda a reflectir sobre o que está em causa no racionamento em saúde. Matéria que foi recentemente tratada num parecer solicitado pelo Ministério da Saúde à Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) que gerou, mais do que polémica, grande incompreensão, a meu ver totalmente compreensível. Trata-se, com efeito, de matéria muito delicada e complexa, não apenas porque a vida é valiosa e todos queremos vivê-la com saúde e prolongá-la, mas também porque há desconhecimento. Acresce que nos dias que correm somos metralhados diariamente com decisões sobre cortes nas despesas de saúde, ficamos alarmados e assustados, não nos explicam como são estabelecidos e geridos e como, a bem dizer, interferem na qualidade dos serviços de saúde e no bem-estar das pessoas.
Daniel Sulmasy chama a atenção para a distinção que é preciso fazer entre racionalização e racionamento. Dois conceitos diferentes. A racionalização também é necessária, é preciso combater o desperdício. É poupando no que não é necessário e em melhor utilização dos recursos existentes que se libertam meios. É ético racionalizar e racionar. Mas no caso do racionamento implica existir um juízo colectivo sobre os limites que devem ser impostos aos cuidados de saúde para benefício da sociedade. Neste caso tem que haver justificação num bem maior, no sentido de solidariedade e bem comum.
É por isso necessário haver um debate aberto sobre o racionamento, que não deve ser feito por legisladores à porta fechada nem por um grupo de médicos e especialistas que preparam uma lei para ser aprovada. Daniel Sulmasy defende que o debate deve ser muito abrangente, competindo à sociedade civil encontrar os equilíbrios que entende justos, na certeza de que queremos que os sistemas de saúde funcionem bem, mas no pressuposto de que não é possível termos tudo para todos.
E o debate não deveria, digo eu, deixar de fora a componente espiritual da medicina, no sentido de que os doentes não sofrem apenas do corpo, têm necessidades espirituais que tantas vezes são ignoradas pelos cuidados de saúde.
E o debate não deveria, digo eu, deixar de fora a componente espiritual da medicina, no sentido de que os doentes não sofrem apenas do corpo, têm necessidades espirituais que tantas vezes são ignoradas pelos cuidados de saúde.
Depois do referido parecer da CNECV nunca mais se ouviu falar do racionamento. É já o habitual, num primeiro momento alimenta-se uma polémica, gera-se a confusão e instalam-se dúvidas, não há debate esclarecedor, para de seguida deixar morrer o assunto como se nunca tivesse existido, talvez um dia mais tarde seja ressuscitado a propósito de um qualquer outro facto com potencial mediático.
Fazer o debate é a melhor maneira de defendermos o que podemos e queremos ter. Quanto tempo vamos aguardar para sabermos como vai este assunto ser tratado (está a ser tartado?) em Portugal…
Um exemplo concreto da pobreza a que chegamos, e ainda por cima com tentativa de legitimação, em termos "éticos", facto que considero ser mais uma ofensa aos direitos dos cidadãos, sobretudo dos que sofrem. Afinal, o diagnóstico é relativamente fácil de efetuar: "má consciência social".
ResponderEliminarSim, o que está em causa não é um problema de racionar ou não racionar, mas saber usar. E as regras para o seu uso, medicamentos caros no caso concreto, estão bem definidas. O que me custa é "utilizar" a ética para impor uma nova ordem, quando muitos dos problemas que levaram à desgraça do país não são tratados, nem legal nem eticamente. Um país doente e com "má consciência social". Claro que os mais necessitados irão conhecer os "novos valores da ética". Pobre país.
Também li a entrevista, muito interessante e a mostrar que, por muito que custe, em breve (?) nos confrontaremos com a estrita gestão dos recursos de saúde, que podem muito bem passar pelo racionamento. Será que algum dia estaremos preparados para enfrentar esta dura realidade de modo a que a saúde chegue a todos? De notar, na entrevista, a referência ao conceito de medicina preventiva: "São gastos milhões de dólares em exames inúteis, por exemplo análises ao sangue feitas sem qualquer objectivo, sem sintomas, sem queixas." Mas não era isto mesmo que se pretendia ser menos oneroso que a intervenção na doença?
ResponderEliminarSuzana
ResponderEliminarOntem à noite ouvi na televisão que a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto apresentou um estudo que conclui que o racionamento de medicamentos nos hospitais portugueses apresenta “problemas éticos substanciais", chamando a atenção que há primeiro que racionar o que é supérfluo ou que é menos necessário, na mesma linha da chamada de atenção feita na entrevista. O responsável da Faculdade denunciou que os hospitais estão a fazer racionamento de medicamentos para doentes com cancro, sida e que sofram de doenças de reumatologia. Se isto está a acontecer, qual é a base legal e ética? É matéria tão delicada que não pode estar fechada numa “caixa preta”.