sábado, 5 de janeiro de 2013

Saudades do pão...


De manhã cedo, assim que ouvia a buzina da bicicleta a tocar insistentemente, abria de imediato a porta e via a máquina com duas largas anquinhas de verga, tapadas com um pano branco, estacionada junto ao muro. Quando o padeiro destapava os cestos, um cheirinho quente e saboroso a pão fresco invadia subitamente o terraço, perfumando o nevoeiro ou o fresco matinal. Pegava num papo-seco, estaladiço e meio oco. Corria para casa e barrava-o com manteiga, que se derretia deliciosamente em contacto com as paredes ainda quentes, seguido de sôfrega ingestão, desfrutando a saborosa gordura embrulhada na doce textura do trigo, sempre acompanhado do café fumegante de cevada, porque isso de beber leite causava-me enjoos. Ala que se faz tarde, mas mesmo assim ainda levava mais um para comer a meio da manhã na escola. Quando ia comê-lo já estava mole, meio esmagado pelas tropelias, e frio. Ao abrir a saca, os outros meninos olhavam para mim. Via que o cobiçavam. Perguntava se queriam trocar o que traziam pelo meu pão com manteiga, mas antes tinha de saber o que tinham. Alguns não traziam nada, outros mostravam grossas fatias de broa, escuras, em que uma ou duas pequenas sardinhas rançosas, muito amareladas, destilavam um líquido que amolecia a dureza e a secura da fatia; quando as via nem hesitava, toma lá e dá cá. Que coisa mais saborosa. No espaço de duas horas apreciava as texturas e os sabores do alimento mais nobre da espécie humana, o verdadeiro símbolo da vida, desde sempre incorporado em inúmeras práticas desde as pagãs às religiosas. À hora do almoço, houvesse o que houvesse, o sabor da comida era refrescado umas vezes, e condimentado outras, graças às pequenas porções de broa de milho, trigamilho, pão de centeio, pão branco ou o delicado pão espanhol que ia metendo na boca. O que interessava era que o pão estivesse presente, sem ele a refeição perdia o interesse, e eu o apetite. O meu lugar, mesmo que nunca fosse o mesmo, era denunciado pela presença de migalhas. O lugar que apresentasse mais migalhas era considerado como o meu. - Onde está o pão? Recusava-me liminarmente a prosseguir o ato de restauração sem a sua presença. À tarde, depois das aulas, aparecia novamente o padeiro que enchia um enorme tabuleiro de latão com os papos-secos. Quentes, estaladiços e meio ocos. Durante as brincadeiras e correrias, sempre que passava por aquele altar de prazer, sacava um sem necessidade de o rechear fosse com que fosse. E os dias iam passando, sempre em redor do pão, umas vezes a seco, outras recheado de marmelada ou doce caseiro, muitas vezes com manteiga, algumas vezes numa estranha mistura de manteiga e açúcar amarelo, um néctar de prazer e fonte de energia necessária às múltiplas tarefas de qualquer criança. Às escondidas também sabia mergulhar bons pedaços em malgas de vinho com açúcar, às descaradas inebriava-me com grossas fatias de presunto que se revoltavam com denodo contra os meus pobres dentes, e só através de bons pedaços de pão é que conseguia engolir. Muitas foram as tardes em que ia ver cozer as broas no forno comunitário, e outras tantas ver como amassavam o pão e o coziam na padaria, sempre  auxiliado por práticas religiosas com complexas orações, pedidos de bênçãos e feituras de cruzes, numa constante realidade que, momentaneamente, cortava as bizarrias e as típicas conversas marotas. Pão, sempre o pão da vida, o pão que mata tudo, a fome do corpo e a fome de alma. Um passado rico, cheio de pão e cheio de vida. Uma saudade louca em apreciar o calor do divino sol. Sempre que posso deixo-o derreter em pequenas gotas de prazer entre as minhas papilas escolhendo as melhores para que, através delas, viaje pelo meu passado e pelo universo desconhecido, a lembrar um útero ávido de saborear a presença de uma nova vida. O pão sabe conduzir-nos aos melhores recantos da nossa existência. É pena que os deuses nos castiguem através do pão, porque são eles que o amassam, o diabo, que dizem que amassou pão, nunca fez isso, porque nunca o comeu...

7 comentários:

  1. na aldeia até à minha idade adulta fabricávamos semanalmente o pão casqueiro.
    já não tenho dentes para ele

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  2. Nem de proposito, na passagem pelo paul da marylebone high st, nao resisti ah tentacao de um pao com azeitonas, de que gostei muito. o diabo eh q engorda... tambem nao resisti ah compra, na daunt books, de alimento para p o espirito: o livro HhH, de laurent binet, sobre a operacao anthropoid, em praga, 1942. espero gostar, tambem... achei q, hoje, o prof Massano, iria referir a morte da "lady of the cells", Rita-Levi Montalcini.

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  3. Nem de proposito, na passagem pelo paul da marylebone high st, nao resisti ah tentacao de um pao com azeitonas, de que gostei muito. o diabo eh q engorda... tambem nao resisti ah compra, na daunt books, de alimento para p o espirito: o livro HhH, de laurent binet, sobre a operacao anthropoid, em praga, 1942. espero gostar, tambem... achei q, hoje, o prof Massano, iria referir a morte da "lady of the cells", Rita-Levi Montalcini.

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  4. Nem de proposito, na passagem pelo paul da marylebone high st, nao resisti ah tentacao de um pao com azeitonas, de que gostei muito. o diabo eh q engorda... tambem nao resisti ah compra, na daunt books, de alimento para p o espirito: o livro HhH, de laurent binet, sobre a operacao anthropoid, em praga, 1942. espero gostar, tambem... achei q, hoje, o prof Massano, iria referir a morte da "lady of the cells", Rita-Levi Montalcini.

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  5. O Pão é um caso de meme gastronómico que nos acompanha há milhares de anos e provalvemente já nos alterou o código genético. No futuro seremos os homos sapiens panis. O idem será amputado, visto por uns como sobranceiro e contrário à realidade e por outros mais simpáticos como autêntico mau gosto.

    Vindo da noite dos tempos o Pão trás consigo as práticas da alba do homem. E por falar em noite, a visita e degusto da primeira fornadas nas noites de Verão, pingantes de manteiga, uma iguaria!

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  6. MM

    Não falei sobre sobre Rita-Levi Montalcini, porque já tinha falado sobre a senhora (http://quartarepublica.blogspot.pt/2009/04/rita-levi-montalcini.html). Deu-me para falar um pouco sobre o pão. Explico porquê, adoro, mas é um alimento que me está praticamente vedado. Não me custa nada deixar de comer qualquer outra coisa, mas pão e castanhas é um castigo. Além de mais, recordo tantas histórias em redor do pão... Não falei das primeiras fornadas da madrugada, pois não, mas se falasse...

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  7. obrigada pelo esclarecimento, mas so me dei conta da morte de Rita-Levi atraves do obituario da revista "the economist"... qto ao pao, como eu o entendo! ainda me lembro de, em alturas de exames no ise, hoje iseg, as madrugadas de estudo acabarem, invariavelmente, numa padaria das proximidades...

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