sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Maria J.

Hoje é dia dos pequeninos com cancro.
Hoje vou contar uma história. A história de Maria J.
Sinto uma estranha e preocupante tristeza a inundar de cinzento a atmosfera da vida. Por cada dia que passa sinto o crescer de uma angústia que atinge praticamente qualquer um. Desespero, depressão, desemprego, desconfiança, dor e desilusão. Olho para os jornais e leio que a confusão está instalada em toda parte, no governo, na economia, na banca, na indústria, nos serviços, na saúde e até nalguns refúgios da alma, como é o caso da religião. Cada um dá importância aquilo que lhe mais toca de perto, é natural, é humano, é perfeitamente compreensível. Mesmo os que se sentem um pouco mais desprendidos e almofadados sabem que a crise também lhes toca, a crise de falta de esperança e de valores. Não tarda, assistiremos ao descambar da ordem social, não tarda, iremos ver confusões que há pouco tempo seriam impensáveis.
Choca? Sim, claro, quando o nosso futuro ou o dos nossos fica comprometido começamos a sentir a angústia a lamber-nos o corpo e o desespero a corroer a alma. No entanto, sei que tudo isto irá passar, não sei se é uma questão de tempo ou de vontade, talvez sejam as duas. O que eu queria mesmo era ver a esperança estampada nos rostos dos mais novos.
A crise social, económica e financeira há de encontrar o seu fim, fim que constitui o momento do nascimento de uma nova vida e ordem social. O renascimento irá ocorrer, uma deliciosa fatalidade que tarda, mas que podemos acelerar e intensificar com a nossa dedicação e trabalho.
Mas há coisas na vida que não renascem, morrem e matam.
No final da manhã vi o último trabalhador, um jovem angustiado e ar macilento. Fixei a sua imagem, porque, aquando da minha palestra matinal ao grupo, revelou muita atenção. À pergunta sacramental, se andava bem de saúde, respondeu, de imediato, que andava a fazer medicação. "Tenho que a fazer. O meu psiquiatra disse que tinha de ser. Não tinha outra hipótese". À medida que ia dando explicações, sem dizer o que tinha, movia-se com algum desconforto e ansiedade na cadeira. Estava à espera que lhe perguntasse o que é que tinha acontecido. Senti que deveria ser algo de grave. Comecei a ficar, também, ansioso, porque previ uma resposta cheia de dor à pergunta que lhe iria formular. Preparei-me para o embate. - Posso saber o que é que lhe aconteceu? Suspirou durante um quarto de segundo e respondeu, baixinho: - Perdi um filho há quatro meses. Uma sensação de gelo invadiu-me por completo. Senti a sua dor e a necessidade de conversar. Levantei os olhos e perguntei-lhe: - Quer falar sobre o seu drama? Em silêncio, retira um pequeno e múltiplo desdobrável com fotos de uma criança do interior do casaco e coloca-me nas mãos. Cada página tinha uma foto e por debaixo frases de amor, de lembranças. Folheei-o sem dizer nada. Uma criança linda, com cabelo, sem cabelo, com bicicleta, sem bicicleta, até que a última representava uma criança de cabelo comprido de cor de mel. - Uma menina? - Sim, morreu com nove anos, essa foto foi tirada três dias antes de morrer. Seis anos, senhor doutor, seis anos a lutar contra um maldito tumor, andei por todos os lugares, Inglaterra, Estados Unidos, e afinal não era necessário, os nossos fazem do melhor que há no mundo, mas não puderam salvá-la. Um tumor raro. Deixei-o falar, é a única coisa que sei fazer nestas ocasiões. Falou o tempo que quis, falou o tempo que necessitou para abrandar a sua dor. -Tenho outro filho, mais velho, tem quinze anos, e sofreu, também, muito, mas parece que está a querer ultrapassar as coisas. Sabe, senhor doutor, estou a pensar em adotar uma menina. Preciso imenso de ocupar um espaço que me dói tanto. Agora espero que a minha mulher aceite, estou convicto de que sim. Perguntei-lhe o que é que ela fazia, professora, mas agora dedicou-se ao voluntariado. - O senhor doutor sabe que todos os dias aparecem crianças com leucemias e outros tumores? Eu perguntava aos seus colegas as razões para estes fenómenos, mas nem eles sabem muito bem. A conversa continuou ao sabor da dor e da procura de algum lenitivo. Ao sair confidenciou-me que nunca mais iria esquecer a minha palestra e agradeceu-me. Perplexo, não lhe perguntei as razões, nem podia, limitei-me a puxar da memória. Não foram, decerto, os conceitos técnicos, científicos ou filosóficos, talvez tenham sido simples conceitos, banalidades, verdadeiros memes, capazes de ajudar a mudar a forma de ser e de estar, contribuindo para a mudança, mudança que está ao alcance de qualquer um.
Fiquei com um estranho amargo de boca. A força da dor pela perda de um filho consegue sobrepor-se a qualquer crise ou sofrimento. Perante mais um caso, história de sofrimento atroz, sou obrigado a partilhá-la. Não consigo calar-me, não consigo compreender e não consigo aceitar estes casos, apenas sei que irei recordar mais uma criança que nunca conheci, neste caso a Maria J....

10 comentários:

  1. Anónimo23:58

    Caro Professor, haverá algo mais anti-natural, mais contra a ordem natural da vida, que um pai enterrar um filho? :-(

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  2. Concordo. Não há nada mais cruel e anti-natural.

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  3. Caro Professor Massano Cardoso
    É um desgosto irreparável, é um fardo que os pais carregam toda uma vida.

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  4. Nove anos de luta e desespero! Nove anos, que tormento, para no fim perder a filha, não sei como se pode suportar, realmente o ser humano tem forças impossíveis de imaginar, como será a vida desse casal e desse filho, presos a tão violenta memória? Não sei se nos serve para relativizar os nossos próprios problemas, mas pelo menos serve para aumentar o nosso respeito pelas razões dos outros.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Quando um homem é colocado perante a fragilidade da sua existência e perante a impotência de poder alterar as circunstâncias que o rodeiam e lhe limitam o querer, restam-lhe duas alternativas: ou erguer os olhos, ou baixa-los. Numa e n'outra, ele não deixa de ser o homem, passa sim a ser o homem optou por acreditar profundamente em algo, ou, render-se.
    Nos princípios religiosos, é esta "viragem" que abre novas perspectivas de vida e que faz com que o homem acredite na possibilidade de renovação.
    Patente na cruz de Cristo, sobre a Sua cabeça, encontramos sempre a sigla INRI, que a maioria de nós pensa que foi criada na sua crucuficação. No entanto, muito antes já os Judeus a entoavam nos seus rituais secretos.
    O significado desta sigla não é um só, mas todos se relacionam com a renovação através do fogo.
    Para a igreja católica, a sigla significa Iesus de Nazaré, Rei de Israel.
    No entanto se entendermos Cristo, como fonte de toda a renovação e regeneração, então INRI representará a expressão: Ignis Natura Renovatur Integram, que poderá ter a tradução: O fogo, renova incessantemente a natureza. Isto, se compreendermos Cristo como como uma força ígnia, capaz de queimar e destruir o ego que nos condiciona e de fazer nascer em cada ser uma nova vida.

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  7. PS:
    Sr. Professor,
    Os olhos da menina que ilustra o post, denunciam o traço da sua filha Inês...

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  8. É verdade, Bartolomeu. O desenho é dela...

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  9. "The Stolen Child", by William Butler Yeats

    Where dips the rocky highland
    Of Sleuth Wood in the lake,
    There lies a leafy island
    Where flapping herons wake
    The drowsy water rats;
    There we've hid our faery vats,
    Full of cherries
    And of reddest stolen berrys.
    Come away, O human child!
    To the waters and the wild
    With a faery, hand in hand.
    For the world's more full of weeping than you can understand.

    Where the wave of moonlight glosses
    The dim gray sands with light,
    Far off by furthest Rosses
    We foot it all the night,
    Weaving olden dances
    Mingling hands and mingling glances
    Till the moon has taken flight;
    To and fro we leap
    And chase the frothy bubbles,
    While the world is full of troubles
    And anxious in its sleep.
    Come away, O human child!
    To the waters and the wild
    With a faery, hand in hand,
    For the world's more full of weeping than you can understand.

    Where the wandering water gushes
    From the hills above Glen-Car,
    In pools among the rushes
    That scarce could bathe a star,
    We seek for slumbering trout
    And whispering in their ears
    Give them unquiet dreams;
    Leaning softly out
    From ferns that drop their tears
    Over the young streams.
    Come away, O human child!
    To the waters and the wild
    With a faery, hand in hand,
    For the world's more full of weeping than you can understand.

    Away with us he's going,
    The solemn-eyed -
    He'll hear no more the lowing
    Of the calves on the warm hillside
    Or the kettle on the hob
    Sing peace into his breast,
    Or see the brown mice bob
    Round and round the oatmeal chest
    For he comes the human child
    To the waters and the wild
    With a faery, hand in hand
    From a world more full of weeping than he can understand

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