Bem vistas as coisas, foi a solidão de uma e de outra que as
aproximou, mais do que a vizinhança das casas, uma, morada de rendeiros pobres,
a outra, a casa do monte, ambas decrépitas pelo abandono das terras e o deserto
de gentes em redor.
Luísa habituara-se a visitar a senhora na casa do monte sempre que a
doença do marido lhe permitia aquele desafogo de tempo. Subia a ladeira íngreme com uma ligeireza insuspeita na sua idade avançada, com algum mimo de
ovos, fruta ou flores que ela mesma plantava perto do poço junto à sua casa, e
assim agradecia os dois dedos de prosa em que se entretinha, já que com o seu
homem não havia maneira de se entender desde que a maldita doença lhe transportara
o espírito para longe e lhe fechara os ouvidos à decifração das palavras.
Luísa tinha vindo estrear a Casa da Ribeira no dia do seu casamento e
por ali ficou mesmo depois de criados os filhos e de os ver partir para a
cidade, distantes da vista e parcos em notícias. Não sabe dizer como passaram
50 anos, a vida toda, sentia o tempo nos ossos, no entorpecimento das mãos, mas
o que lhe pesava mesmo eram as ruínas das casas próximas, a falta dos vizinhos
de sempre e o silêncio da casa, apenas quebrado pelos gemidos e súplicas do
marido condenado à doença sem remédio.
As duas mulheres tornaram-se amigas, quebrando barreiras seculares que
existem na cabeça das pessoas mas que o instinto e o coração das mulheres sabem
pôr de lado quando é preciso. Conversavam e ajudavam-se, arrimo último uma da
outra, sobreviventes à deriva nas tormentas da vida que lhes ditou a solidão
num cenário onde ambas, de formas tão diferentes, tinham sido felizes.
Foi a morte do marido que trouxe os filhos de Luísa à terra, foi só
então que olharam e viram aquela pobreza corajosa, que imaginaram os dias e
noites do pai agonizante e da mãe servidora, foi aí que decidiram levá-la para
um lar onde não lhe faltasse conforto e companhia.
Ela revoltou-se, chorou e implorou que a deixassem ficar, correu
ladeira acima a invocar a antiga autoridade senhorial junto dos filhos, que não
os deixasse, que não permitisse, entre nós as duas podemos bem levar a vida até
ao fim.
Mas tudo foi inútil. Os filhos mal entendiam aquela amizade, estima é
uma coisa mas amizade não há, mãe, bem nos lembramos de descobrir a cabeça à
passagem dos patrões, se tiver uma aflição não há aqui quem a socorra, pode
ficar certa.
A despedida daquele lugar, que sempre fora a sua casa, foi para ela uma
segunda morte depois da do marido, parecia que enterrava nas malas despojos sem
vida, sentia na boca aquele amargo sem remédio, o frio sabor do tem que ser.
Quando a amiga do monte veio oferecer-lhe ajuda para arrumar as coisas,
encontrou-a espantosamente conformada. Não, conformada não seria, era antes a
resignação dos que se habituaram a sofrer, dos que apanham as migalhas da vida
como uma dádiva e suportam as agruras como uma condição.
Luísa organizava a partida como se já nada ali a prendesse e coibiu-se
até das habituais manifestações de carinho para com a outra, como se também
isso devesse ficar para trás. Mas, de repente, puxou-a por um braço com um
gesto simples e fê-la sentar-se no pequeno banco de cortiça, junto à arca do
seu enxoval. Venceu a custo a resistência das dobradiças enferrujadas e começou
a desdobrar as rendas que fora bordando nas vigílias à doença do marido, fazer
renda era o meu descanso, a pensar na minha neta, mas os jovens de hoje já não
dão valor a estes trabalhos, leve-as consigo, sempre fica com uma recordação
minha.
A amiga tentou consolá-la, vai ver que ainda se vai dar bem no lar, mas
Luísa abanou a cabeça, a afastar o consolo, há-de ser o que Deus quiser.
No dia em que a foram buscar, pela manhã, não havia meio de se decidir
a partir, olhava o caminho do monte e inventava razões para voltar uma e outra
vez à casa vazia, como se lhe faltasse resolver um último assunto.
Quando viu a silhueta de mulher a descer a ladeira correu para ela, furtando-se
ao olhar impaciente do filho. Pegou-lhe nas mãos, ansiosa, e pediu-lhe, a
senhora sabe como eu gostava dos meus bichos, o burro já o vendi vai para 3
anos, mas o cão, o Joly, era a paixão do meu Ângelo, bom guarda que só visto, não
sou capaz de lhe fazer mal e para onde vou não mo deixam levar, faz-me o favor
de o acolher ali ao Monte? Hoje mesmo o levo para cima, vá descansada e, num impulso,
as duas mulheres abraçaram-se com força e assim ficaram longamente, em silêncio,
guardando naquele gesto mudo a amizade improvável que tanto as amparara e unira.
Surpreendente, e bom.
ResponderEliminarHa quem - e muito poucos serão - consiga manter intacto, num lugar muito só seu, o "Grande Poder da Imaginação" (retirado do post em baixo). E num momento, num momento especial, faça "acordar" esse poder e crie com ele uma obra capaz de extasiar quem lhe tiver acesso.
ResponderEliminarQue pena, a vida não poder ser feita exclusivamente de manifestações de poder. Do Poder da Imaginação!
;)
Belíssimo texto Drª Suzana, obrigado.
Senão me tivesse já habituado a esta escrita fina, ia dizer que a Dra. Suzana Toscano se esmerou particularmente para este dia. Em todo o caso quero ler este post como uma homenagem prestada pela brilhante autora a todas as mulheres. Junto-me neste tributo.
ResponderEliminarObrigada :)a todos, e acertou, caro jotac, o tema é de propósito.
ResponderEliminarÉ de propósito e a propósito. Sabe bem ler coisas belas quando a realidade da vida se afoga na imaginação.
ResponderEliminarluisa, não vá pelo caminho do massano, que é uma massada. Escreve, escreve e nada diz de válido.
ResponderEliminarCumprimentos
Gostei muito deste pequeno conto. Só quem conhece profundamente a realidade de tantas Luisas poderia descrever de forma tão sublime este sentir português, este conformismo que nos tolhe a vontade e nos adia a felicidade. Assim fomos criadas, educadas, moldadas... quantas é que algum dia se vão, através da vida, soltar destes grilhões. Perceber como é exiguo este retangulo onde vivemos, mesmos no cantinho da europa, como é exiguo o nosso conhecimento. Além, mais além, existe todo um mundo para explorar, outras formas de ver, de sentir de ser.
ResponderEliminarSuzana
ResponderEliminarVenho atrasada, mas afinal todos os dias são dias "especiais". Nas alturas difíceis a ternura, a solidariedade, o querer ajudar vêm ao de cima. Não por acaso, a esperança nunca morre...