Não estou acostumado a tardes com muito sentido, porque são tardes afogadas em compromissos, e a de hoje, então, não foi grande coisa. Descomprometi-me. Não sei para quê. Estou arrependido. Fui ao centro comercial e vi poucas pessoas. Pessoas que fingiam comprar, que fingiam vender, que fingiam passear, que fingiam viver. Entristeceram-me. Comprei dois tinteiros de tinta para as impressoras. Esqueço-me frequentemente de ter uma reserva e, por vezes, sai asneira. Um alívio, pelo menos consegui adiar a próxima falta de impressão, o que constitui uma boa notícia. Chafurdei na livraria à procura de algo que me seduzisse. Comecei a sentir uns estranhos avisos como se a minha consciência quisesse advertir-me para o facto de andar arredado deste tipo de compras. Dar prioridade à compra de tinteiros em vez de livros nem parece teu, tive a sensação de ouvir lá no fundo. Não me chateeis, respondi-lhe forte e grosso no silêncio do pensamento. Mesmo assim fui compelido a pegar na "Mortalidade" de Christopher Hitchens. Um pequeno livro que compila os últimos textos do filósofo e ensaísta quando soube que tinha um cancro do qual viria a morrer em pouco tempo. Folheei-o. Li algumas passagens, mas comecei a sentir uma incómoda irritação. Causa-me uma profunda dor ter de ler estes relatos na primeira pessoa, é como se estivesse a ler o meu próprio fim. Compro, não compro? Acabei por não o adquirir, contra vontade, com medo. Ao lado estava a obra de dois "malucos", que aprecio imenso, William Burroughs e Jacques Kerouac, “E os hipopótamos cozeram nos seus tanques”. Dois expoentes da “beat generation”, os “prá frentex”, com as suas tiradas, experiências e vivências. Olhei através da montra e conclui que o tempo não estava de feição para os ler. À morte de um associei a loucura de dois construída sobre a morte de um outro. Mas para não ter de ouvir aquele incessante resmungar de uma consciência meio ofendida, calei-a, adquirindo uma obra ficcional, prazenteira, simples e cuidada como é timbre do seu autor, Arturo Pérez-Reverte, “A ponte dos assassinos”. É muito melhor ler algo que é a fingir num dia em que me pareceu que toda a gente andava a fingir. Fingimento por fingimento prefiro uma qualquer ponte, uma ponte para a imaginação, passem ou não por ela assassinos da vida, do futuro ou do passado...
Quando os computadores começaram a fazer parte integrante dod dia-a-dia das pessoas e logog a seguir a serem indispensáveis nesse dia-a-dia, apercebime que estávamos a entrar numa era de faz-de-conta. E em diversas ocasiões, comentei com amigos esta sensação e desconfiança. Mas as pessoas com quem comentava, estavam já rendidas aos encantos do uso do aparelho e todas me respondiam: qual quê?! Isto é o futuro, daqui a pouco tempo quem não dominar o uso desta técnologia é pura e simplesmente aniquilado, excluído.
ResponderEliminarEncolhia os ombros e pensava, que toda a gente estava ceguinha. Hoje, já nem os médicos estão dispensados de passar as simples receitas dos medicamentos, sem ter de usar a máquina onde escrevem e a outra que imprime aquilo que escreveram.
Não me acho um saudosista inveterado, mas era sem dúvida muito mais romântico assistir a um médico escrevendo geralmente com a sua caneta de tinta-permanente, que agora, vê-lo de olhar pregado no monitor, mão no rato a fazer correr páginas com quadradinhos onde colocar cruzes. O que vale é que as cruzes não se acham na vertical, senão, a "coisa" assumiria até um tom macabro.
;)
Quanto à morte:
Quando era criança, era por vezes assaltado pelo medo da morte dos meus pais. Assustava-me imenso pensar que um deles poderia morrer e, lembra-se a minha mãe de lhe perguntar por vezes, se ela iria morrer, ao que ela me respondia; só quando for muito velhinha. Para minha grande satisfação, tem cumprido a promessa. Hoje assalta-me por vezes o medo, de eu vir a morrer antes dela.
Encaro a morte com muita naturalidade, até a acho absolutamente necessária. O mundo não poderia existir sem morte, e se existisse sem morte, teria forçosamente de existir sem nascimentos, ou então, teria de ir crescendo ao rítmo dos mesmos, o que, nesta altura, faria com que a nossa Terra, já fosse provávelmente do tamanho de todo o sistema solar. Mas como seria isso possível?
Então, como está, é que está bem!
Excelente retrato a ilustrar, (talvez!), uma tarde de errância num centro comercial. Mas, é também um retrato inacabado, pois só “ouvimos” o pensamento do autor, falta também o da gente anónima que por lá deambulava. Que pensarão eles? Que sonhos, que desilusões e angústias os povoam? Terão ainda a capacidade e vontade de construir “pontes” seguras que lhes encham os dias... Bem sei, caro Professor, não é adivinho, mas andou perto quando retratou o fingimento…
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