Sexta-feira santa, chuvosa, triste, a convidar ao descanso merecido de lutas sem fim, de guerras perdidas, combatendo numa sociedade desestruturada, vazia de ideias, pérfida, idiota, capaz de capar o mais otimista. Acordo cedo. Um castigo imposto pelos dias de trabalho que desconhecem a existência dos feriados. Fiz um esforço adicional para prolongar o tempo de repouso. Soube-me a algo mais simbólico do que prático, mas deu para rememorar outras sextas-feiras santas, tantas, e todas cheias de histórias. Hoje, sexta-feira santa, colecionei mais uma. Gosto de as colecionar, gosto de as registar, gosto de as reler e de as dar a conhecer. Gosto de juntar "as palavras para ficarem boas e bonitas".
Toca o telefone. A voz, nova, doce, timbrada, eivada de encanto e de fantasia, cumprimenta-me com um bom-dia que nem o sol consegue nos dias de verão ao nascer.
- Bom-dia, meu amor.
- Vovô, tens que me ajudar, a mamã acordou com dores de cabeça e não se levanta para tomar o pequeno-almoço. Que é que eu faço? A preocupação era sentida e, no cenário de fundo, ouvia o riso divertido da mãe. Tive de lhe explicar o que é que a mamã deveria fazer, e à medida que ia debitando os meus conselhos divertia-me com os recados amorosos que ela retransmitia, como se fossem os meus ecos, mas mais divertidos e convincentes do que as minhas próprias palavras. Ficou tranquila, a ponto de mudar de conversa e perguntar-me:
- Vovô, queres que te conte umas histórias?
- Conta. Em seguida, demonstrando uma capacidade narrativa invulgar, cheia de tons coloridos, de comentários soberbos, de entoações vocais a lembrarem as ondas a baterem nas rochas ou a espraiarem-se nas areias, lançando risos de estupefação, debitou, mesmo sem conseguir perceber algumas frases, devido à emoção de quem conta com rapidez inexperiente e um aparelho vocal infantil, o relato de um vídeo com "Maique Jesse", que, pelos vistos, adora ver e ouvir e, até, imitar num inglês inexistente.
Uma delícia, confesso.
A mãe apercebeu-se que eu não tinha compreendido bem a história e, por isso, procedeu ao envio do vídeo que esteve na base da história que tentou contar-me. Fez-me gostar do mesmo, porque vi-o com outros olhos. Comentei em seguida que a miúda, apesar de ter quatro anos e três meses, três meses aos quatro anos é muito importante, daqui este preciosismo, é uma excelente narradora. Tem estilo, imaginação e é capaz de prender a atenção. Talvez com o tempo, quem sabe, possa ver o nascimento de uma escritora. Eu gostava. Ainda não sabe as letras, mas com o tempo... Comuniquei à mãe esta minha reflexão, terminando, vou estar atento.
O que é que a mãe fez? Foi-lhe dizer o que eu pensava, que poderia ser mais tarde uma escritora. Ouviu e respondeu:
- Olha, era uma boa ideia, mas gostava mais de ser médica das letras... A mãe, surpreendida com a resposta, perguntou-lhe o que era ser médica das letras.
- Humm... não sei bem, mas é tratar delas, juntar as palavras para ficarem boas e bonitas".
Nunca me tinha passado pela cabeça que ser médico das letras é tratar delas, juntar as palavras para ficarem boas e bonitas. Mas a miúda tem razão, as letras têm de ser bem tratadas, com carinho, com amor e serem transformadas em palavras bonitas. Que mais podemos desejar? Palavras bonitas ditas e contadas por uma criança que ainda não sabe desenhar palavras. Só espero que um dia consiga para meu prazer e de todos que as leiam.
E assim, a sexta-feira santa, chuvosa e triste, transformou-se num símbolo de vida, a convidar à ressurreição, graças a uma criança.
As crianças ensinam-nos. Só temos de estar atentos.
Professor Massano Cardoso
ResponderEliminarSó temos que estar atentos e procurar a vida, a nossa e a que nos rodeia, para que cada sexta-feira seja uma sexta-feira Santa.
As crianças são uma fonte de criatividade e inspiração. "Médica das letras": extraordinário numa menina de quatro anos! Lá juntou várias coisas e criou uma outra cheia de sentido!
Bem que precisamos dessa especialidade de medicina para tratar as barbaridades que por aí de fazem com a nossa língua!
É verdade! Concordo com a frase com que MAria Margarida, remata o seu comentário.
ResponderEliminarAs nossas letras, tanto faladas como escritas, estão a precisar urgentemente de médico.
Quem sabe, depois de ficarem boas e bonitas, e de serem impressas, não fossem capazes de curar tantos males que afligem e agridem a nossa sociedade?
Se o não conseguissem completamente, de certo seriam um excelente complemento para que um tratamento possa resultar com eficácia.
Estou a recordar-me de uma certa história de um certo miudo que morava numa certa vila e que, a meio da noite se viu atacado por uma amigdalite. O "remédio" foi recorrer ao enfermeiro Pedrinho que lhe prometeu oferecer-lhe um livro do Pinóqui, caso o pequeno não chorasse quando lhe ministrasse a zaragatoa.
Ao que consta, o "remédio" do livro surtiu o efeito desejado.
;)
Sabe bem ler "palavras boas e bonitas". Ajudam, e muito, a aguentar as tormentas e a manter a esperança ou o que resta dela...
ResponderEliminar