Diz a lenda que Górdio, coroado rei da Frígia, era um humilde camponês que chegara à cidade num carro de bois. Para não esquecer o seu passado, amarrou a carroça com um nó impossível de desatar a uma coluna no tempo de Zeus. Reinou por muito tempo e quando morreu, seu filho Midas assumiu o trono. Midas expandiu o império mas não deixou herdeiros e o Oráculo declarou que quem desatasse o nó de Górdio dominaria toda a Ásia Menor. Quinhentos anos depois, em 334 a.C, Alexandre, o Grande, ouviu essa lenda ao passar pela Frígia. Foi ao templo de Zeus, desembainhou a espada e cortou o nó, vindo a conquistar toda a Ásia Menor. (adaptado da Wikipedia)
Parece que o nó Gordio do Estado Social por essa Europa fora vai ser resolvido à maneira de Alexandre o Grande ou seja, cortando. O problema é que, se a lenda nos diz que o eficaz Alexandre conquistou, como se predizia, a Ásia Menor, nada nos diz sobre o que aconteceu à carroça de seu avô Górdio, que a tinha atado bem atada com o nó indestrutível para que ficasse como memória duradoura das suas origens humildes. O mais certo é ter-se perdido nas ruas, apodrecido ao relento ou embatido contra uma parede, desfazendo-se completamente, e, com ela, o símbolo vivo do débil ponto de partida da prosperidade do povo. A Górdio tinha sucedido Midas, que teria o condão de transformar em ouro tudo o que tocava, talvez fosse por isso que o seu filho Alexandre não hesitou em puxar da espada em vez de perder tempo a desatar cuidadosamente o nó sem fazer estragos, estava confiante de que já não eram precisas memórias obscuras dos tempos pobres e que a riqueza e a espada afiada assegurariam um futuro sempre radioso.
Nas décadas passadas, contemporâneas da afirmação da idade da tecnologia que hoje vivemos em pleno, ainda era bem visível a carroça da memória dos tempos difíceis da reconstrução do pós guerra, ali estava bem atada a prova de que a partilha da riqueza, o equilíbrio social, a aspiração à mobilidade social e o desenvolvimento harmonioso dos povos eram essenciais para a paz e o crescimento e que a exclusão de muitos e a prosperidade de poucos, cidadãos ou países, tinham levado a um desastre aterrador.
Assistimos entretanto à substituição de pessoas pelas máquinas, a espantosas invenções que mudaram as fontes de riqueza, glorificaram o “imaterial”, dispensaram músculos e força para assumir a inteligência e o cálculo, já não se leva, envia-se, já não se fala, transmite-se electronicamente, recolhe-se, trabalha-se e armazena-se informação, o tempo real comanda a vida, depressa, depressa, já.
Nesta sociedade de conhecimento e informação em que o mundo se fez pequeno deixou de ser preciso gente e as pessoas reformaram-se, receberam subsídios, protecção na saúde, educação e tudo o que não podiam pagar porque já não tinham salários para isso nem era preciso que tivessem. O ritmo de produção e simplificação da vida deixaria tempo para o lazer, para a velhice prolongada, para as viagens.
A Europa, qual Midas, anunciava-se, lembram-se?, como o mercado mais competitivo do mundo, até 2010, baseado numa economia do conhecimento, um oásis de tecnologia onde era só esperar que a riqueza fluisse e nos protegesse de outros dissabores.
Sobrou a carroça das pessoas, velhas e novas, esse vestígio do passado de que nos queremos desenvençilhar, esse incómodo incompatível com o imaterial. Ficou o nó górdio do bem estar assegurado, das gerações ultrapassadas e das qualificadas à espera das oportunidades que só chegam para alguns, muito poucos, ficaram as cidades fervilhantes de desempregados, ficou o cenário do que se tinha imaginado à espera do génio que desate o nó para assim ter direito a conquistar o mundo. Uma carroça atulhada de gente, que não deixará que a lenda se afirme sem ela.
Partilhei. Não comento, só aplaudo.
ResponderEliminaros mitos urbanos substituíram os rurais.
ResponderEliminara Europa já não explora as colónias. as matérias-primas são cada dia mais escassas e caras.
não conseguiu resolver o problema das energias que consome
abandonou os sectores primário e secundário
agora os contribuintes são 'cornutus et hirsutus'
e não valem 'unum bombum'
Cara Suzana:
ResponderEliminarExcelente, como explicação global, mas podendo lançar um véu diáfano, mas enganador, sobre o que de específico se passou entre nós.
É que, por cá, um filho da prosperidade ganha na mera actividade política não hesitou em puxar da espada do gasto público, apertando cada vez mais o nó que sempre teimou em não reconhecer;estava confiante de que já não eram precisas memórias obscuras dos tempos pobres e que a riqueza fluiria à medida dos golpes da espada afiada dos cobradores de impostos, que assegurariam um futuro sempre radioso.
Futuro esse que chegou sem glória, mas cheio de suor e lágrimas. Então o guerreiro afastou-se para campanhas mais confortáveis.
“O velho mundo está morrendo, o novo mundo tarda em aparecer e neste claro-escuro surgem os monstros” (Antonio Gramsci)
ResponderEliminarE, no entanto :http://bandalargablogue.blogs.sapo.pt/228045.html
ResponderEliminarCara Suzana
ResponderEliminarO desenvolvimento económico, a economia, é aquilo que os homens quiserem fazer dela. São os homens que determinam as relações de produção, as relações de propriedade, o nível das desigualdades entre eles e não uma força qualquer, estranha, obscura, alheia e para alem dos homens. É a vontade dos homens que determina a natureza do desenvolvimento financeiro, económico e social dos povos. O mundo será aquilo que os homens quiserem que ele seja.
O desenvolvimento tecnológico, científico, sempre em crescendo, liberta os homens de muitas tarefas. Poder-se-ia imaginar assim, um mundo em que as novas conquistas tecnológicas resultassem não em desemprego mas em menores horas de trabalho, libertando o homem para mais alargados tempos para a família, culturais e de lazer.
Tudo depende da sua vontade o modo como se organizam em sociedade. Podem utilizar as conquistas tecnológicas para amontoar riquezas nas mãos de meia dúzia de homens e lançar milhões de outros no desemprego e na miséria ou, pelo contrário, dar emprego a todos com redução de horas de trabalho e distribuição equitativa da riqueza.
Tudo, mas tudo, depende da vontade dos homens.
Tudo, mas tudo, depende da vontade colectiva dos homens.
Não concordo, de todo. A máquina a vapor ia acabar com a necessidade de termos pessoas na economia, o computador ia acabar com a necessidade de termos pessoas na economia e não me parece que este fim do mundo que se aproxima seja muito diferente dos fins do mundo porque passámos. Ninguém está a querer acabar com o estado social na Europa. Isso é propaganda. Tenta-se neste momento baixar os custos do estado social, o que não é mau, é bom. Aumentar o valor entregue na educação é cortar no estado social? Reduzir os custos da saúde para que esta chegue a mais gente, baixar os ordenados dos funcionários do estado para que os outros possam ter um emprego condigno , tudo isso são cortes no estado social ou são upgrades? As pessoas vivem mais, no que é que isto é mau?
ResponderEliminarPassamos por uma altura fantástica da história do ser humano. Pela primeira vez os 10^10 seres humanos estão ligados entre si, trocam trabalho, conhecimento, vidas. Claro que não é o mundo dos últimos 10 anos. É melhor, mas não vai deixar vestígios do antigo, como a máquina a vapor não deixou nada.
Caro Floribundus, alguns desses problemas resultaram de resposta a outros problemas que os antecederam e, mesmo assim, tem havido progressos, sobretudo aonível das energias, mas o aumento da população mundial e da actividade económica e bem estar trouxe mais pressão para que se encontrem outras respostas. O mundo não pára, felizmente.
ResponderEliminarCaro Pinho Cardão, há sempre esses "voluntaristas" que acabam por atar o nó ainda com mais força quando julgam que o desatam, tal como na lenda muitos tentaram...
Caro Lus Moreira, li o seu link e fico bastante preocupada, devo dizer-lhe, o que aí se prop´~oe é que o pouco trabalho que existe seja dividido aos bocadinhos, a pretexto de mais lazer e tempo para a família. Simplesmente, não acredito, o que acontecerá aos salários? COmo se sustenta a família, só com amor? Além disso, quando a esmola é grande o pobre desconfia, como mulher sei bem quem são as primeiras vítimas desse súbito interesse pela família, e ao que levam estas consciências agudas de que afamília em primeiro lugar, quando o trabalho escasseia são as mulheres as primeiras a perdê-lo, a ir para casa tomar conta dos filhos e a depender financeiramente de quem a sustente. Lamento dizê-lo, será até muito politicamente incorrecto, mas não acredito em nada dessa teorias, as mentalidades regridem à velocidade da luz, é uma questão de necessidade.
Caro Carlos Sério, gostava de partilhar dessa sua convicção racionalista, o homem tudo prevê, tudo planeia e tudo determina, como se fosse possível controlar todos os factores que conduzem a vida dos povos e assegurar os resultados. A História prova à saciedade que, em geral, o que se procura é responder a emergências, em caso de ameaça, ou aproveitar as oportunidades quando elas surgem. Muito poucos avanços ou revoluções corresponderam a uma estratégia de longo prazo, controlada e racional, embora a leitura retrospectiva do que aconteceu possa dar-lhes alguma coerência. É interessante reparar que os grandes acontecimentos da História não foram previstos, nem controláveis, as reacções é que as superaram ou levaram à submissão.E, quando assim não foi, quando se quis planear ferreamente, impor modelos e determinar os caminhos do progresso de forma voluntarista, aconteceu o desastre, como se viu nos países da ex-cortina de ferro. Isto não significa que não há margem para prever e agir com cabeça, apenas significa que uma grande parte do que acontece pode ser mais ou menos bem gerida mas muito pouco determinada.
Caro Tonibler, tem toda a razão quando diz que já passámos por muitos fins do mundo, de cada vez que a ordem estabelecida foi alterada por grandes inventos ou mudanças sociais. Em geral, resolveram-se com guerras, de que as guerras mundiais são exemplo flagrante, mataram-se milhões e milhões d epessoas, destrui-se tudo e depois nasceu um mundo novo. A máquina a vapor, para pegar no seu exemplo, deixou a sua marca.Hoje, os novos moldes de trabalho, que dispensam a mão de obra intensiva, abrem um novo abismo, como dividir por todos o que tão poucos podem produzir? Não sei se alguém quer acabar como Estado Social, tem de novo razão quando diz que oq ue se pretende é redistribuir o mesmo, ou o que há, por todos, de modo a assegurar o essencial, só quenão se vê como, se os salários se aproximarem perigosamente de subsídios de sobrevivência e se os impostos não forem bastantes para pagar as contas da saúde e da educação e das pensões, para não falar de outras funções de interesse geral.É um nó górdio, como digo, não sei desatá-lo, apenas temo que o corte não seja tão precisamente desferido que não fique a carroça à deriva.
ResponderEliminarCara Suzana
ResponderEliminarColocar o homem impotente perante a sua própria obra, perante as forças económicas que ele próprio criou e desenvolveu, perante as relações sociais que gerou, é uma doutrina que há milénios tem sido utilizada pelas elites dominantes de todas as épocas. O mundo não gira ao acaso, nem os homens são reféns de si próprios. Colocar o homem no limitado papel de apenas “gerir os acontecimentos”, irresponsabilizando-o dos próprios acontecimentos, será uma doutrina favorável a todas as classes dominantes, a todos os opressores e ditadores da história, mas profundamente errónea.
O Homem colectivo será sempre o único senhor do seu destino.
Caro Carlos sério pensei que resistisse a essa resposta radical, bastante previsível. Creio que está hoje bastante ultrapassada a dicotomia estado total ou estado mínimo, pelo menos seria de esperar, pelo que não vale a pena querer conduzir tudo ao planeamento versus planeamento nenhum. Hoje , em modelos mais ou menos elaborados ou insuficientes, o que se trata é de saber até que ponto conseguimos manter e aperfeiçoar o que há, a sociedade e os estados mudaram muito desde keynes ou hayek embora as suas teses sejam indispensáveis para percebermos e evoluirmos.se é absurdo e perigoso cortar o nó górdio do estado social, reduzindo-o a pouco ou nada, parece inegável haver grande dificuldade em fingir que podemos pagá-lo tal como existe e se projecta para o futuro.
ResponderEliminarCara Suzana
ResponderEliminarContudo, há e haverá sempre numa determinada época, indefinições quanto ao desenvolvimento e futuro das sociedades. Em momentos de crise, quando interesses sociais opostos lutam entre si. Ocorre até que interesses egoístas de minorias poderão vencer várias batalhas. Certo é que os interesses das maiorias tarde ou cedo romperão e o avanço social da humanidade conquistará mais um degrau no seu desenvolvimento social e humano. Regressões históricas civilizacionais, como aquela a que agora nos querem impor, só poderão manter-se num período muito curto de tempo. É um absurdo histórico pensar-se que o futuro dos homens reside em doutrinas com políticas económicas e sociais que fomentam o aumento das suas desigualdades sociais e o empobrecimento generalizado das maiorias.
(Corre no rodapé da televisão que Juncker acaba de afirmar – “Na Europa, os demónios da guerra estão apenas adormecidos”)
Dá que pensar...
Imaginativo, incisivo, realista, são os adjetivos que me ocorrem. Muito bom mesmo, tivessem "eles" esta cultura e certamente que o sonho europeu não seria o pesadelo que parece estar a tornar-se...
ResponderEliminarTal como o Drº Ferreira de Almeida, partilhei...
ResponderEliminarCaro Carlos Sério, estou totalmente de acordo consigo, o difícil exercício actual é conseguirmos sair desta situação sem desfazer tudo o que sustenta o frágil equilíbrio social deste país pobre. Tem razão também quando diz que estas crises são propícias para regressões históricas que podem conduzir ao desastre, partilho inteiramente essa angústia, que considero muito realista. Mesmo que se pense que tudo é diferente hoje, o certo é que as guerras e a destruição também podem assumir muitas formas, até que estoiram. Oxalá possamos falar com menos apreensão daqui a uns tempos, oxalá.
ResponderEliminarObrigada caro jotac, tempos que ir pensando nas coisas sérias...ainda bem que gostou.