Para regressar ao passado basta montar um cometa, depois da sua passagem pelo sol, e voar até às mais longínquas distâncias esquecidas pela memória. O cometa tem o condão de saber o local onde nascer e morrer é igual. Mas não é preciso ir tão longe, porque pode ser uma experiência muito assustadora.
Estou a olhar para o céu e não consigo ver as estrelas. Já não as vejo há muito. Começo a ter saudades, tantas como do sol, perdido ou roubado.
Imagino que um cometa se aproxima. Agarro-me à sua cauda e precipito-me em velhas recordações. Anda depressa o cometa. Peço-lhe que abrande e me deixe ver o que é aquilo, são vozes a espreguiçarem-se, sons confusos, interjeições brejeiras e risos sardónicos, envoltos em longas labaredas, com um estranho cheiro a petróleo, das quais evola um espesso fumo branco acinzentado capaz de obrigar os olhos mais secos a lacrimejarem e a interromper a deliciosa gritaria com acessos incómodos de tosses secas.
E vi, vi um sábado de aleluia em que queimavam o Judas. Um sábado que desejava com uma paixão especial, não propriamente por ser sábado, não por queimarem o Judas, mas porque anunciava o fim de um período triste, em que éramos obrigados a ser, também, tristes. Uma tristeza. Começava com as regras impostas pela Quaresma, que sempre me incomodaram. Ao aproximar-se a quinta-feira santa as coisas complicavam-se, não se podia fazer nada. A televisão programava a tristeza e emitia música religiosa. A rádio a mesma coisa, sem o mínimo de encanto, maçuda a dizer basta. Então, na sexta-feira as coisas pioravam. Não havia programa na televisão, era o único dia do ano que fechava. Rádio? Nem isso. Um silêncio mortal. Só procurando estacões estrangeiras, em onda curta ou em onda longa, mas ouvia-se muito mal. Vá lá, a partir das três da tarde já emitia sons, não agradáveis, mas o suficiente para dizer que havia vida vinda através do éter. O sábado demorava a chegar e só o sono infantil é que conseguia acelerar o nascimento do novo dia. De manhã, acordava bem disposto, sentia que havia mais movimento, e a perspetiva da queima do Judas, à noite, prometia uma alegria furiosa capaz de afogar a tristeza imposta dos dias anteriores. Nessa noite, pendurado do pontão do caminho de ferro, uma figura de palha montada numa moto, retratando o Arlindo, dono do café que ficava precisamente nas costas do local do enforcamento motorizado, provocou uma explosão de risos, qual concerto sinfónico, o mais desafinado que Judas decerto ouviu. Regado com petróleo, explodiu num ápice lançando fumo, fagulhas e sons de bombas de foguetes colocadas no interior, provocando, mais uma vez, gritaria da mais sardónica possível, numa noite estrelada e fria em que um invisível cometa passeava com toda a tranquilidade.
Quem não gostou nada, mas mesmo nada, foi o Arlindo, que, com o seu temperamento emotivo, lançou pragas e impropérios proibidos para o período. Nunca lhe disse nada, era pequeno, e ele andava a ensinar-me a jogar bilhar francês, e eu não queria perder a oportunidade de aprender.
Hoje, se fosse vivo, decerto não se importaria de ouvir que me deu um gozo dos diabos vê-lo a ser "queimado", um Judas de moto a fazer inveja aos Teddy Boys dos anos cinquenta e sessenta. Nunca lhe disse nada, nem eu nem ninguém, e agora, que já foi no cometa que nos leva ao ponto onde nascer e morrer é a mesma coisa, lembrei-me deste sábado de aleluia. Escrevo esta mensagem e peço ao cometa que me trouxe até aqui que a leve. Estou certo que vai dar uma gargalhada de alegria.
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