quinta-feira, 25 de abril de 2013

Perceber...


Saiu cedo embrulhada no xaile, cheia de fé empacotada. Corria com um passo miudinho, como se tivesse medo de pisar hipotéticos pedaços de vidro, mas sempre mergulhada em ideias dolorosas, próprias de quem precisa urgentemente de um favor, que só podia ser divino, já que na terra a experiência lhe tinha ensinado que não pode contar grande coisa com o seu semelhante. Ia ao templo rezar, ou melhor, pedir, ou seja, rezar para obter um favor. Não sei se acreditava na intercessão dos santinhos junto do poder divino, convencia-se que sim, que tinham essa missão e capacidade de mudar o curso dos acontecimentos. 
Pedir favores está na massa do sangue de qualquer um. Cá em baixo faz parte da realidade quotidiana. Lá em cima é muito mais complicado, só com favores e preces especiais, intensas e repetitivas como se fossem a melhor maneira de ultrapassar a surdez ou a demência de alguns santos, já que não conheço todos e não vá um dia precisar de algum. Não creio que me seja útil. Entrou, rezou, ou melhor, pediu, invocou, prometeu, fez tudo o que lhe tinham ensinado, confiante ou fingindo confiar que iria ter sucesso. Acendeu uma vela sem cera, como se os santos andassem a par das evoluções tecnológicas, coisas que não precisam no sítio onde vagabundeiam. Voltou pelo mesmo caminho, indiferente a tudo o que tinha vida e beleza, já as tinha visto vezes sem conta, para ela não contavam para nada. No dia seguinte voltou a fazer o mesmo percurso, caminhando sobre pedaços de vidro e cheia de fé empacotada. Entrava, rezava, ou melhor, pedia um novo favor, crente na intercessão divina dos santos e santinhos dos altares do templo. Fazia o percurso inverso indiferente à vida em redor, cheia de beleza. E assim passava os dias, sem que os favores divinos a premiassem uma vez que fosse. A vida em redor, e ao longo dos caminhos, refosgalva com entusiasmo, nascendo, vivendo, envelhecendo e rejuvenescendo, cumprindo um ritual cheio de encanto e beleza. Envelheceu sem nunca se ter apercebido que não era preciso pedir nada a ninguém, ao divino, claro, quando em seu redor era a própria vida que rezava a ela, sem lhe pedir nada, apenas querendo mostrar que a amava. Nunca se apercebeu disso, tal como os santos que nunca entenderam ou ouviram o que ela lhes disse ou prometeu. 
Foi pena não ter percebido. 

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