Procuro as noites quentes de verão, sobretudo
as que são embelezadas pelas brisas suaves e doces, que sabem correr de forma
invisível sobre as águas paradas da ribeira, roçando-as, afagando-as com uma
volúpia fácil de imaginar. Deve ser a época de acasalamento entre o ar e a
água. Em frente, o vazio de um belo espaço, centrado pelo pelourinho, símbolo
da autoridade municipal. Uma coluna "retorcida" terminada numa
pequena esfera armilar de metal. Não se pode dizer que seja uma preciosidade arquitetónica
se a compararmos com outros pelourinhos das redondezas. Não interessa,
conheço-o desde que comecei a lembrar-me
de mim. É o suficiente. Corri e saltei em seu redor, sentei-me nos seus
"degraus" e senti o calor das pedras quentes à noite, um estranho
calor reconfortante que ele sabe devolver ao fim de um dia de verão. Viu-me
crescer e vê-me a envelhecer, sempre em silêncio. Guarda tantas memórias,
tantas, que encheria quilómetros de lembranças com almas conhecidas e
desconhecidas. Elas navegam em seu redor seguindo os veios da pedra, saltam,
correm e descansam nos seus degraus. Uma espécie de altar da memória individual
e coletiva, onde se pode prestar culto.
Lembro-me de há muitos anos ter visto uma
peculiar personagem que corria por estas bandas a ajoelhar-se com os braços
abertos a fingir uma cruz. Cabelos compridos a caírem sobre os ombros, numa
mistura de branco, cinzento e castanho, quase sempre molhados, não sei se de
água, brilhantina ou de suor. A fácies, barbuda, a imitar o cabelo, transmitia
um ar estranho, bíblico, pobre, apatetado mesmo, não se vislumbrando se era
assim de nascença ou se foi adquirido. Sempre de casaco e de gravata, montava
uma velha pasteleira em que sobressaía uma enorme buzina que utilizava amiúde.
Pedalava com determinação com o seu ar meio aristocrático e meio decadente. Uma
estranha combinação que provocava simpatia e interrogação sobre quem seria. Não
se metia com ninguém. Evitava as pessoas como os animais quando são mal
tratados pelos humanos. Cruzei-me vezes sem conta com ele, aguçando a minha
curiosidade. Deixei que o tempo passasse porque acaba sempre por me segredar
coisas, coisas que às vezes nem queria saber. Nesse dia vi-o a aproximar-se do
pelourinho. Desmontou da bicicleta, com
a qual conseguia transportar coisas impensáveis, quer em géneros quer em
volumes, e ajoelhou-se, abrindo os braços em cruz. Levantou a cabeça e rezou
apaixonadamente com um ardor difícil de traduzir. Na esplanada ouviu-se uma
explosão de hilaridade. Eu fiquei a olhá-lo com admiração e ternura. Confundiu
o pelourinho com uma cruz? Deve ter sido essa a explicação para as gargalhadas
e chacota. Talvez, pode ter sido, mas quem sabe se não terá sido uma forma de
culto às almas que giram em seu redor, às suas lembranças, às minhas e às de
muitos outros.
Passado algum tempo, encontrei-o ao fim de um
dia de campanha. A noite tinha acabado de cair. Num recanto afastado, sem luz,
junto à sua bicicleta e a um atrelado amontoava coisas e mais coisas com um
cuidado perfeccionista. Cumprimentei-o. Retraiu-se, afastou-se desconfiado. Não
disse nada. Tentei comunicar com calma para poder ganhar alguma confiança.
Falou muito pouco, tinha um défice cognitivo mais do que evidente. Mais do que
esperaria. Não o incomodei. Não tinha esse direito. Desejei-lhe novamente boa
noite e estendi-lhe a mão. Assustou-se e deu um passo para trás. Fiquei algum
tempo de mão estendida. Olhou-me. Ao fim de algum tempo desisti. Senti um
estranho incómodo por manter aquela posição, num espaço escuro, triste e sem
condições nenhumas, perante um pobre ser.
Quando comecei a afastar-me estendeu nervosamente a sua mão. Apertei-a e
desejei-lhe boa noite. Sorriu.
Passado algum tempo soube que tinha morrido
no seu casebre durante a noite. O fogo consumiu tudo, a bicicleta, o atrelado,
as suas "coisas" e ele.
A primeira reação que tive foi, "nunca
mais vou vê-lo a rezar, de braços abertos, em cruz, junto ao pelourinho".
Já ninguém se deve lembrar dele. Eu
lembro-me. Bastou-me olhar para a coluna de pedra encimada por uma pequena
esfera armilar de metal. A pedra liberta um generoso e estranho calor.
Acabei de lhe tocar...
A maioria de nós, habituou-se a valorizar muito pouco, ou nada, matérias do foro sentimental.
ResponderEliminarDeve ser por isso que textos como este, nos prendem a atenção e produzem a quem os lê, enquanto os lê, a sensação de se achar num lugar indefinido, em suspensão; entre o chão e outro algo que não se sabe o que é, nem se sabe ao certo onde está, ou se existe.
Alma, todos possuímos; excepto os desalmados. Mas até esses sentem e provávelmente emocionam-se, como se emocionava aquele homem que na praia, ouvindo o rebentar da onda e espraiando o olhar até ao horizonte, deixava que os seus pés enterrados na areia, recebessem a energia mediúnica que o transformava no intermediário entre os homens e o espírito.
Intermediário entre os homens e o espírito.
;)
God is love!
ResponderEliminarCatholic blogwalking
http://emmanuel959180.blogspot.in/
O caro Bartolomeu tem razão, estes textos tiram-nos da nossa realidade e trazem um suplemento de alma, ficam a dançar na nossa cabeça até acabarmos de saborear.
ResponderEliminar