domingo, 4 de agosto de 2013

"Domingo"...


"Domingo"...
Domingo de verão enfeitado por uma manhã de sol a convidar a desfrutar a liberdade. Um objetivo prático estava traçado desde a véspera. Um início que não vislumbrava o fim. Andar à deriva é a forma mais escorreita de encontrar o que se quer encontrar, sem saber o quê. Basta andar. Basta procurar e logo se vê. Comecei em Côja, onde decorria uma pequena e modesta feira. Adoro visitar esta vila pequena onde ainda se consegue sentir o cheiro de uma aristocracia rural e desfrutar belezas naturais. À sombra do belo e silencioso rio, digno do seu nome, Alva, ouço vozes de encantos humanos que por ali passaram e comungaram as suas histórias de amor. Tentei ver se na feira estaria um velho santeiro que conheci há anos por esta altura. Confesso que tinha a esperança de lhe adquirir uma das suas obras populares, embora um pouco toscas. Não o encontrei. Já deve ter morrido, pensei. Sentei-me no meio da rua sob um calor intenso para almoçar. Simpatia, favas, bom vinho e simpatia. Gentes simples, despreocupada e longe das crises, passeavam e cumprimentavam-se. O jovem empregado, muito atento ao nosso apetite, perguntava amiúde se estava tudo bem e se era preciso mais favas. A esferográfica na orelha fez-me lembrar os velhos tempos dos taberneiros e merceeiros da minha terra. Tentei recordar algumas histórias, mas depressa se esvaneceram porque passavam pessoas. Pessoas que me atraíam. Não denotavam sinais de tristeza, apenas indiferença pelo que fazem lá em baixo junto ao rio Tejo, um rio que deve ter ciúmes do Alva.
O sol, as pessoas, os alimentos, as paisagens, os sentimentos, a beleza e o encanto do amor, em conjunto, fez com que esquecesse o que vem de Lisboa.
Decidi, vou dar uma volta. Adoro ser envolvido pelo passado. O mesmo sol, o mesmo calor, os mesmos desejos e as mesmas esperanças viveram sempre por estes lados. Basta olhar para as casas, ruelas, meandros, serras e ar. Basta sentir e desejar sentir. Um encantamento.
Passei por belos sítios, revivi uns e conheci outros. Enquanto a natureza revigora a cada instante, fazendo-me inveja, muitas habitações entraram em decadência irreversível, e causam-me tristeza. Um passado nobre que se volatiza a cada instante. Deixo-me impressionar e encho-me de histórias que ali decorreram. As almas gritam. Ninguém as ouve. Ninguém as quer ouvir. Mas eu ouço-as. São confusas, falam todas ao mesmo tempo com vozes de cristal, afagando-me com uma estranha sensação de calor. Deixo-me embalar ao longo do Alva que me fala com uma voz melodiosa e fresca, convidando-me a todo o momento para me embrenhar nos seus braços. Prometi-lhe que o farei. Acalmou-se. Eu também. O Alvoco ouviu e ficou cheio de ciúmes. Prometi-lhe que também comungaria com ele. Acalmou-se. Eu também. 
Eis que de repente, mesmo ao lado do Alvoco, no meio da estrada, vislumbro uma pequena mesa, redonda, tapada com uma bela toalha rendada. No meio da mesa estava um belo vaso com flores. Deitado na mesa, à sombra das flores dormia um crucifixo. Perplexo por este achado dei, de imediato, de caras com uma procissão. Bandeiras religiosas, andores com vários santos e santas, irmandade, fiéis, o padre sob o pálio e nada de banda filarmónica. O "comandante" religioso, um forte rapagão, afogueado pelo calor e pela bandeira que transportava, vendo a minha surpresa, acena-me com veemência para que andasse. Eu fiz-lhe a vontade, claro. Mas queria saber para que servia a mesa com a toalha rendada, o vaso com as flores e o crucifixo à sua sombra, numa tarde de sol intenso que nem a brisa do rio conseguia refrescar. Para onde iria a procissão? Tinha que voltar para trás. A povoação terminava naquele sítio. Era o sinal para dar a volta, tipo boia de sinalização. Curioso, pensei. Uma população religiosa e cheia de fé. Andar numa procissão àquela hora era de fazer inveja ao diabo. Ao terminar a povoação, parei. Do meu lado direito um cemitério chamou-me a atenção. Nunca vi nada parecido. Abandonado, campas térreas, com vasos todos deitados, como se um vendaval tivesse passado por ali. Mas não, era mesmo abandono. As poucas campas de mármore estavam descaídas, tortas, e roseiras bravas e arbustos gigantescos nasciam de algumas campas dando a entender que muitas das suas raízes já teriam abraçado fémures ou entrado nas órbitas dos crânios. Valha-me Deus, pensei. No outro lado vai a procissão com os fiéis a dar a volta em redor do Cristo crucificado, que estava a fazer a sua sesta, no meio da estrada, à sombra de um vaso com belas flores e em cima de uma toalha branca, pura e rendada. Neste lado da povoação um cemitério abandonado pelo desprezo humano. Que contraste! Virei as costas ao rio, e à povoação, e fugi para a montanha, agreste e dura. Depois pensei e continuo a pensar...




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