segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Em memória de António Borges

1. Não é meu hábito fazer elogios fúnebres; são por regra exercícios de louvor fugazes e passageiros, mais ditados pela satisfação de necessidades mediáticas do que por razões de sentimento. Acresce, neste caso, que António Borges (AB) não precisa nada dos meus elogios e que a amizade que nos uniu não é fugaz nem passageira, perdurará para sempre.

2. Não me proponho pois enaltecer as qualidades humanas e profissionais do AB, outras pessoas bem mais qualificadas já o fizeram com grande eco mediático, vou evocar apenas um episódio que ambos vivemos no já remoto ano de 1990, em Basileia, aquando da sua nomeação para o (na altura) importantíssimo cargo de Presidente do Comité Monetário, o principal órgão de apoio ao Comité de Governadores dos Bancos Centrais da União Europeia que reunia mensalmente naquela cidade da Suíça (sede do Banco de Pagamentos Internacionais).

3. A presidência desse Comité Monetário estava então a vagar, tendo sido seu último presidente um destacado Director de Estudos do Banco de França, Mr. Raymond, pessoa muito amável e muito respeitada profissionalmente no Comité de Governadores.

4. Colocou-se a questão da sua substituição, e resolvi avançar com a candidatura do AB, que por essa altura frequentava regularmente as reuniões de Basileia na sua qualidade de VGov do Banco de Portugal (funções que iniciou em 1989), merecendo generalizado respeito pela qualidade das intervenções que produzia.

5. A candidatura de AB merecia apoio de alguns governadores de peso (do Bundesbank, por exemplo), mas enfrentava reservas por parte de outros, em especial do Banco de França: não por falta de respeito ou consideração em relação a AB mas pelo facto de Portugal na altura pertencer ao que se poderia classificar uma 2ª divisão em sede de estabilidade monetária e cambial – o Escudo não integrava ainda o SME e vínhamos de um passado recente de grande instabilidade financeira, monetária e cambial...

6. ...assim, aceitar que um respeitado representante do Banco de França, no exercício de uma função de tal destaque – tratava-se de dar conselhos aos Bancos Centrais em matéria de política monetária e cambial – fosse substituído por um português, por mais qualificado que este fosse como era o caso de AB, era algo que o Governador do Banco de França da altura, Jacques de Larosiere, apesar de ser uma pessoa com quem tinha estabelecido uma relação de boa amizade, não via assim com muito bons olhos...

7. O Presidente do Bundesbank, Karl Otto Pohel, com quem tb mantinha uma relação muito próxima, aconselhou-me a falar com Jacques de Larosiere para ver se o convencia a retirar as reservas em relação à nomeação do AB; segui o conselho e, sem hesitação nem demora, fui falar com Larosiere.

8. A nossa conversa não correu mal, apresentei-lhe os meus argumentos o melhor que pude, no final ele pareceu-me quase convencido a apoiar a candidatura de AB, mas colocou uma condição: queria ter uma reunião a sós com AB antes de se decidir.

9. Foi o que eu quis ouvir, pois tinha a certeza que AB o iria convencer facilmente – e foi o que sucedeu, Larosiere telefonou-me depois para me dizer que a conversa tinha corrido muito bem, e que iria apoiar a candidatura de AB à presidência do Comité Monetário.

10. Escusado será dizer que nas reuniões do Comité de Governadores em que AB apresentava as posições/recomendações do Comité Monetário, sempre impressionou pela clareza da sua exposição e pela forma sucinta, fluente e precisa como respondia às questões que lhe eram frequentemente colocadas...andei por lá mais 2 anos, e foi para mim uma grande satisfação assistir ao enorme sucesso de AB no desempenho daquela função...

11. Recordo-me ainda da notícia da sua nomeação ter sido recebida em Lisboa com grande destaque, constituindo mais um argumento para a subida do País à 1ª divisão europeia (da qual haveria de ser relegado, cerca 20 anos mais tarde, graças ao talento de uma classe política e opinativa com vocação para a decadência, mas isso já é outra história)...

10 comentários:

  1. Excelente testemunho, caro Tavares Moreira. Apesar de apenas os cegos não quererem ver o valor de António Borges, testemunhos destes são um grande contributo para o reconhecimento a quem, em funções públicas ou privadas, nunca deixou de servir o país. Como António Borges.

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  2. Caro Pinho Cardão,

    Quero deixar também expresso que subscrevo, na íntegra, o Post colocado pelo meu Amigo e dedicado ao António Borges.

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  3. Um homem que prestigiou Portugal

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  4. Importante testemunho, Dr. Tavares Moreira, por certo do desconhecimento geral. A luta permanente, sem nunca desistir, que o António Borges travou com a doença terrível que o consumiu fisicamente ao longo de três anos é uma prova da combatividade com que lidava com os desafios que tinha pela frente. Uma de muitas qualidades que quem com ele trabalhou não esquece.

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  5. Inquestionavelmente, caro Luís Moreira, por isso mesmo muito mal apreciado, internamente. É um triste fado deste velho País...

    Cara Margarida,

    Tem razão, esta última fase da vida e a luta que o AB travou contra a feroz doença que o atingiu e contra o tempo que sentia fugir-lhe, é uma verdadeira epopeia e um enorme exemplo para todos nós.

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  6. Anónimo10:12

    Um depoimento pessoal importante, este que nos traz Tavares Moreira. Uma só vez encontrei o Professor António Borges, num dos últimos atos em que estive presente como membro do governo. Fiquei, com efeito, impressionado com a enorme sabedoria mas, sobretudo, com a convicção com que afirmava os seus pontos de vista contrastantes com o sentido prevalecente dos palpites a que os sábios "apreciados" nos habituavam, então como hoje.
    Os relatos que tenho ouvido sobre a abnegação da última parte da sua vida são uma prova de força interior e sim, um exemplo para todos.

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  7. Há algo que me intriga: até ao momento, passadas quase 48h após o falecimento do Prof. António Borges, ainda não vimos uma reacção do lider ou representante da direcção do 2º partido da coligação do governo, governo do qual António Borges foi colaborador durante estes últimos 2 anos (apesar da sua doença).
    Aliás não só esta posição é de estranhar, como, num País que se acha com maturidade democrática, os representantes dos partidos da oposição deveriam ter uma palavra a dizer no momento em que faleceu uma pessoa com os méritos que conheciamos a António Borges e que representou e muito bem o nome de Portugal lá fora. Como referiu MRS, de António Borges teve influência não só em Portugal mas também, nos EUA, na Ásia e na Europa. De facto é lamentável vermos o comportamento da classe política em geral quando se perdeu uma pessoa com o valor que tinha António Borges.

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  8. Uma justa apreciação, caro Ferreira de Almeida.

    Cara Maria Matos,

    Não deixo de lhe reconhecer razão, nesse apontamento crítico.
    Mas confesso que pouco mais posso acrescentar além do que refere como comportamento lamentável de uma boa parte da classe política.
    Não se mostram capazes de enxergar/avaliar pessoas e situações para além dos limitadíssimos horizontes/critérios partidários - este País está mesmo esfacelado, não sei se terá alma para recuperar...

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  9. Caro Tavares Moreira, gostei de ler o seu testemunho que, além do mais, também serviu para me compensar da envergonhadela que senti ao ler o que escreveram no Arrastão, insultando o defunto, coisa que nem queira ler, para não se incomodar.

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  10. Caro Tiro ao Alvo,

    Eu não li nem tenciono ler esse dito "arrastão", embora não ignore que há gente capaz de tudo...

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