sábado, 30 de novembro de 2013

"Anjo-da-guarda"...

Adoro imprevistos, desde que me deslumbrem e aqueçam a alma. Criar histórias está no interior das minhas células, que se alimentam do inesperado, do encanto, da poesia, do amor e de o respirar de gente simples, anónima, gente que ambiciona ser feliz. A história é simples, uma imagem velha, delicada, harmoniosa, cheia de silêncio, repleta de belos tempos, alvo de cuidados, adorada ou respeitada, um símbolo profundo e religioso de quem tem o poder de proteger e guardar a alma dos mais fracos e vulneráveis. Nada de especial. Um anjo-da-guarda, vindo dos confins do tempo, e que alimentou a vida de quem o possuiu, acabou por cair nas minhas mãos. A imagem levou-me a pensar nas histórias de pequenas coisas, de gente simples, e, sobretudo, das emoções e vidas associadas. Uma pequena imagem cheia de histórias e que acaba de originar mais uma. Caiu-me nas mãos. Tudo o que me caia nas mãos, seja qual for o valor que tenha, tem que ter um tratamento especial, por respeito com todos os pensamentos que absorveu e produziu nos seus donos. Só assim entendo o valor de uma oferta. Cheguei a casa e mostrei as "ofertas" da semana. Instintivamente olhei para a minha neta mais nova, que ouvia em silêncio a conversa, e disse-lhe: - Gostas deste anjinho? - Gosto. É muito lindo! Sabendo da sua apetência, perguntei-lhe: - Gostavas de ficar com ele? Não respondeu, mas os olhos brilharam com a habitual cintilação quando vai receber algo que não estava à espera. - É para ti. Sorriu com felicidade. Quando acabámos de jantar perguntei-lhe onde é que o iria colocar. Entretanto, pediu-me para o pegar. Com doçura, e muito cuidado, foi até à sala onde se sentou com o anjo ao colo. Respondeu-me que ia colocá-lo na porta de entrada. - E o que é que lhe vais pedir? Esperou um pouco e respondeu-me: - Para não ter maus sonhos. Para não cair. Para não me fazerem mal. Para não ter sangue. Para dar saúde à mamã. Disse as frases de forma pausada e séria. Subitamente, agita-se e grita: - Vovô, agora, a Nossa Senhora que tu me deste vai ter a companhia do anjo-da-guarda! Ela vai ficar feliz, não vai? - Vai pois, os santos também gostam de companhia. Calou-se durante alguns segundos e continuou: - Vovó, podias ter dado também ao João e à Mariana. - Pois podia. Mas não te preocupes, santos e santas é coisa que não me falta. Sorriu. - Eu depois dou-lhes um. Está bem? - Está. Mas conta-me a história deste anjo-da-guarda. E eu contei-lhe. Ficou absorta e satisfeita com a origem e as voltas do mesmo até lhe ter chegado às suas mãos. Fui dono durante algumas horas de um anjo-da-guarda, mas entendi que estaria muito melhor nas mãos da minha neta mais nova. Passou a ser dela. Tenho a certeza que daqui a muitos anos, muitos mesmo, ela saberá o que fazer com ele e irá contar uma nova história, simples, delicada e cheia de emoção. É assim que se constrói uma história. É assim que as histórias se alimentam das almas humanas e as almas de histórias.





Generosidade

Sempre que se recebe uma lembrança mandam as regras que se agradeça. Mas há formas peculiares de agradecer. Ontem, recebi um anjo-da-guarda que esteve nas minhas mãos por poucas horas. Ofereci-o à minha neta mais nova por vários motivos. Contei-lhe a história e, ao mesmo tempo, fiz o possível por criar mais uma, antecipando uma outra que a menina, muito mais tarde, irá contar. Precisamos de histórias para viver e as histórias precisam de ser recriadas vezes sem conta. Contei-lhe a história do anjo-da-guarda. Ouviu com muita atenção. Guardou-o junto ao seu coração. É dela. Merece-o. Hoje, lembrou-se de desenhar a senhora que foi dona do seu anjo-da-guarda. Telefonou-me a perguntar se a mãe da senhora ainda existia. Disse-lhe que sim, que estava viva, doente e velhinha. Não se podia levantar. Ficou preocupada e perguntou-me como é que ela podia comer. Expliquei-lhe quem é que lhe dava de comer e como a ajudavam. Respondeu-me que queria desenhar a senhora, mas não sabia desenhar pessoas velhas, só novas. - Vovô, como é que vou desenhar a senhora? - Não sei. Tu é que tens de saber. Calou-se por momentos e depois disse: - Está bem! Vou desenhar a preto.  Há pouco a mãe telefonou-me a dizer que a Leonor estava atarefada a fazer o desenho. Acabo de o receber. Agora tenho de o levar e dar à filha, para que mostre à mãe o agradecimento de uma menina que vai fazer cinco anos e que é a detentora do seu anjo-da-guarda e que vai acompanhá-la por toda a vida. Só espero que um dia faça feliz um novo ser, contribuindo para o perpetuar de uma história que se alimenta da vida das pessoas e que ajude a alimentar almas de boa gente. 


"Chegou a casa e desenhou a mãe da senhora acamada. Do lado direito desenhou um anjo, uma cruz e uma flor, e disse que eram para a proteger, do lado esquerdo uma janela com uma estrela e a lua!"

2 comentários:

  1. Também tenho duas netas.Agora ando a ver se arranjo maneira de lhes dizer que não há que ter medo dos lobos maus...

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  2. Caro Professor Massano Cardoso
    As crianças na sua inocência sabem responder a tudo e com elas aprendemos sempre alguma coisa...

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