Há muito que tinha pensado em subir a encosta e visitar a aldeia como deve ser. Uma espécie de cascata, íngreme, demasiado, e imprópria para pessoas de idade ou que sofram de algum tipo de insuficiência orgânica. Ao longe, sobretudo de noite, encanta qualquer um, quando, ao dar a curva apertada, nos deparamos com tão belo espetáculo. Ao perto desencadeia alguma tristeza pela degradação e despovoamento. Passei milhares de vezes ao seu sopé e já fiz uma tentativa, falhada, de subir a encosta de carro. Um dia hei de visitar esta aldeia. Pensei múltiplas vezes. Hoje foi o dia. Estacionei o carro e pus-me a subir a rua tortuosa e íngreme a ponto de por pouco não ter botado fora os bofes. Uma tristeza. Casas degradadas, velhas e sem gente. Ouvia ao longe alguns cães e ao perto os pássaros. Contei três chaminés que deitavam um fumo branco que se espreguiçava no ar a testemunhar dores reumáticas. Nada. Ninguém. Subitamente vi um cão pequeno num varandim com ar espantado para mim. Ao lado vislumbrei cabelos brancos e em desalinho de uma velha. Debruçou-se e cumprimentei-a: - Bom dia, minha senhora. - Bom dia, bom senhor. Não parei para conversar. Continuei a subir no deserto do velho casario. Ouvia cães, uns à ladrar e outros a uivar, e ainda vi alguma roupa a enxugar. Andei, vasculhei e fiquei com a sensação de contemplar uma aldeia moribunda. Passei por um senhor e após os bons dias pusemo-nos a conversar como velhos conhecidos. Estes espaços, rurais, pobres e despovoados têm esse condão, fala-se de imediato com a maior naturalidade do mundo, como se uma amizade escondida emergisse das pedras negras e tábuas partidas. - Já falta pouco. Cada vez há menos gente. Daqui a vinte anos está morta. - Uma morte lenta. Disse. - Lenta, mas segura. Não há gente. Continuei naquelas vielas, ruelas, escadas, tortas, feias, sujas de tempo, sem almas e sem gente, apenas se ouvia alguns cães, que assim que me viam se calavam de imediato, talvez surpreendidos pela presença de um estranho.
Fiz o percurso inverso, com muito cuidado, porque descer aquela encosta molhada da noite não é tarefa fácil. Arranquei um varapau de um molho perdido e esquecido junto à ombreira de uma porta morta e escancarada e apoiei-me nele, parecendo um vagabundo ou um candidato a peregrino. Ao terminar a descida, uma velhota, de canadiana, saía de casa. Ao pressentir a minha presença virou-se, mas antes colocou a sua mão esquerda na parede da casa para se apoiar. Cumprimentei-a com um natural, bom-dia minha senhora. Replicou: - Bom dia. Benza-o Deus.
"Benza-o Deus"! Há muito que não ouvia esta expressão. Sorri e parti para uma curta conversa. - Tem de ter cuidado ao descer. - Pois tenho, a calçada está muito escorregadia. - Mora aqui há muito? - Desde que nasci. - A aldeia está muito abandonada. - Pois está. As pessoas vão-se embora, uns desaparecem, outros casam-se, outros juntam-se e o resto morre. Seja o que Deus quiser. - Olhe, vá devagar, porque pode cair. - Vou, pode estar descansado, bom senhor, eu vou a casa da minha comadre que está sozinha e doente. - Olhe, um bom ano para a senhora. - Obrigada bom senhor e que Deus o acompanhe.
Um curto diálogo a testemunhar a paisagem humana de uma aldeia moribunda.
Um documento autêntico, escrito por mão de mestre. Obrigado, Professor.
ResponderEliminarE os votos amigos de um Feliz 2014.
Também para si meu grande amigo. Desejo-lhe o melhor do mundo, porque todos sabemos o que é o melhor do mundo para nós e sobretudo para os nossos, sem esquecer os que não conhecemos...
EliminarSão "sobrantes" da modernidade, almas penadas que lá vão vivendo os seus dias de abandono, como uma fatalidade que os envolve sem remédio. Essas aldeias e os seus habitantes são tantas vezes a prova de como a realidade ultrapassa a ficção, pensaríamos que não seria possível mas é, e com frequência.
ResponderEliminarFantástica descrição do mundo rural!Como me revejo no que o Amigo Dr.Massano escreveu!É realmente triste assistir-se à morte certa de tantas terras lindas,onde ainda moram tantas almas puras!
ResponderEliminarFeliz 2014 para si,dr.Massano e todos os Amigos que por aqui se vão deleitando com poemas como este!