A manhã despertou chuvosa e triste. Abalei. Senti desconforto durante a viagem. Veio-me à memória relatos e descrições de tragédias e de sofrimento humano. O momento presente está cheio desses acontecimentos e o passado recente também. Acabei por concluir que durante a minha vida ocorreram muitas situações que não abonam em nada a favor do valor, do futuro e da natureza humana, e se juntar as que ocorreram no passado, então, fico com a certeza de que a nossa espécie é um falhanço da criação. Viver na esperança de que um dia tudo pode mudar é uma perfeita ilusão que ajuda a viver e a enganar a força centrípeta da morte.
Comecei a trabalhar. Os sons da rua obrigaram-me a olhar através da janela e vi que chovia com tristeza, chuva de dor. Confesso que prefiro ver chover com raiva, mesmo que isso provoque algum temor. Leio as notícias e fico sem saber o que dizer. Deixei de pensar, refugiei-me na solidão e olhei para a chuva que morria no chão. Ouvi o chorar da chuva e o gritar da água quando a pisavam. Até a água grita. Eu vi. Um olhar tão cinzento. O cantar da chuva era tão lento. Não sei se era canto ou lamento, só sei que fiquei a ouvi-la durante um breve momento.
O dia continuou, e a tortura da manhã perdurou. Bem tentei esconjurar os pesadelos, quase que consegui, mas, depois, emergiu a dor de um outro ser humano e todas as minhas preocupações se desvaneceram perante um mais episódio.
A senhora, com traços eslavos, e falando corretamente o português, explicou-me, perante a minha pergunta sacramental se estava bem de saúde, que não. Vi que hesitou um pouco. - Não? - Não. Perdi o meu filho de 24 anos há quatro meses. Engoli em seco. Ia perguntar-lhe se tinha sido de acidente, quando a eslava se antecipou dizendo: - Teve um tumor maligno, um sarcoma abdominal. Depois, deixei-a tentar esvaziar a sua dor. Explicou-me os duros pormenores da doença. Não a interrompi. A breve trecho tentei desviar a conversa, perguntando-lhe se tinha mais filhos na expectativa de a obrigar a falar sobre eles. - Não. Só tinha aquele. Engoli novamente em seco. Perguntei-lhe há quantos anos estava em Portugal. Cerca de doze ou catorze, não me recordo bem. E o seu marido, o que é que faz? - Morreu de acidente há catorze anos. Olhei para a senhora e fiquei esmagado com tamanhas tragédias. Já não consegui engolir em seco. Tem família em Portugal, uma irmã.
O seu sofrimento era evidente, mas a sua força de viver impressionou-me ainda mais, porque apesar de ser bastante mais nova do que eu, possuía uma garra e um desejo de ir à luta que me fez pensar sobre a chuva da dor, sobre a tristeza de um dia que tinha nascido e crescido cinzento, sobre os meus pensamentos e reflexões, sobre as minhas queixas, sobre as minhas apreensões, oferecendo-me com a sua atitude, e sons parecidos com os nossos, uma lição de vida que nunca mais posso esquecer. Há quem sofra de verdadeiros males e que, mesmo assim, consegue ajudar quem menos precisa.
No final, levantou-se e, com um belo sorriso nos lábios, desejou-me um Feliz Natal.
Há dias, discuti com um filósofo encartado a afirmação dele, de que a dor, é uma manifestação narcisista.
ResponderEliminarNarcisista?! repliquei. Sim, reafirmou. O ser humano manifesta os sinais de dor para atrair sobre si, a atenção alheia, para ser atendido, acarinhado, adulado pelos seus semelhantes. Manifestar dor, constrange o outro, torna-o fraco, fá-lo perder vigor e beleza, tornando-se assim o queixoso mais belo.
Xiça!
Mas que raio de complicação. Mas se cada um de nós é dotado de sentimentos e se esses sentimentos o obrigam a ser solidário com os que sofrem, com os que necessitam de amparo e ajuda...
Seja como for, devo dizer-lhe Sr. Professor, aquela discussão provocou um nó na minha cachimónia que ainda não consegui desatar.
Bartolomeu.
EliminarMande esse filósofo à merda e diga-lhe que fui eu que o mandei.
Para já, não vou manda-lo à merda.
ResponderEliminarVou sim, prudentemente, aguardar o nascimento de uma ciência de tal forma precisa que nos permita, sem qualquer hipótese de errar, definir com a máxima precisão escatológica, o ser humano.
Então, espere sentado, enquanto o "filósofo" diletante se passeia entre o sofrimento humano...
ResponderEliminarPoderá a questão não ter a ver somente com falta de maturidade, caro Professor, e ser até... uma espécie de convicção, ou até de religião. Afinal, até o grande Pessoa declarou ser o poeta, um fingidor. Seguindo a mesma regra, nada impede o filósofo de considerar o sofredor, um narcisista. Só não sei se manterá a mesma convicção, se o acaso o fizer passar por uma situação de aperto...
ResponderEliminarPois, pois! Ele que espere. Depois muda, a não ser que morra atropelado sem dar conta.
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ResponderEliminarParabéns, Doutor Massano, pela sua inteligência, pela humanidade, pela revolta e pelo excelente português dos seus artigos. É uma leitura obrigatória.
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