Senti o convite da solidão de domingo para que o preenchesse. Afinal o domingo à tarde também sofre de depressão. Falta-lhe algo que preencha e justifique o seu respirar. O domingo não foi feito para descansar, mas sim para meditar, brincar, amar e sonhar. Fiz-lhe a vontade e trabalhei. Em troca deu-me uma moeda de ouro de paz. Gostei da oferta. Com ela, no bolso da imaginação, fiz o que faço a meio da tarde de um domingo. Subi a encosta e as escadas e dei um pouco de conversa. Em troca deram-me lembranças que já não me recordava. - Sabes. Disse-me uma senhora que me cumprimentou de forma efusiva e que me incomodou. Não a reconheci a princípio. Só ao fim de alguns instantes é que me apercebi quem era. Não tinha, na altura, os neurónios ligados na área do reconhecimento facial e oral, embora julgue que, mesmo que os tivesse a funcionar em pleno, iria ter alguma dificuldade. Estava diferente, em tudo, na cara, claro, e numa desinibição preocupante. Mas ia lá, sem dúvida. Olhei-a e fui dar-lhe um beijinho. - Sabes. Num tom alto para que todos pudessem ouvir. - Em pequeno dei-te uma valente palmada no rabo. Vi logo que não ia sair nada de bom. Um generoso riso de orgulho e de gozo inundou-lhe a face, como quem diz, "eu bati naquele senhor que está ali sentado". Quem diria, não é verdade? - Sabem porquê? Agora não era para mim que se dirigia mas para a pequena multidão em redor. - Eu vivia perto da casa dele quando era pequeno e a mãe teve de sair e pediu-me para tomar conta do rapaz. Eu disse-lhe que sim. Passado algum tempo reparei que as malgas de marmelada que a mãe tinha feito estavam todas furadas com o dedo. O rapaz andou a experimentar todas as malgas! Quando vi aquilo fiquei varada e dei-lhe uma valente palmada no rabo. Pois, teve que ser. Já viram o que ele fez, e ainda por cima a mãe tinha-me pedido para tomar conta dele. A satisfação com que contava a história era mais do que evidente. Olharam todos para mim para ver como é que reagia o rapador de marmelada caseira. Sorri e não disse nada. Limitei-me a navegar no tempo e, sinceramente, não me recordo da palmada. Talvez com algum esforço pudesse lá chegar, mas como levava tantas, esta deverá ter passado despercebida. No entanto, subiu-me ao miolo algumas imagens de malgas com marmelada acabada de fazer e que estavam a "secar". Todas elas tinham algo em comum, um buraco. Deve ter sido verdade, porque a outra memória, a do "gosto", estremeceu de prazer com o sabor da marmelada armazenada, um sabor de longa data que ainda está em boas condições. Se está!
Afinal, a moeda de ouro que o domingo me ofereceu não era de ouro, mas de uma saborosa marmelada feita pela minha mãe.
Um sabor que perdura...
Que saudades dessa marmelada confecionada pelas mãos doces das mulheres da casa... Um ritual inebriante que ia desde o aroma da fruta passava pelo aroma da cozedura e acabava fundido no paladar.
ResponderEliminarÓ Senhor Professor, diga-me cá; não acha que as mulheres são umas perfeitas alquimistas? Conseguem transformar fruta em ouro, sem usar o enxofre...
;)))
O senhor bem sabe que sim.
EliminarQuando o meu sogro me via na cozinha dizia sempre "então estás no laboratõrio?" A marmelada é um dos símbolos mais duradouros desse ambiente doméstico e do modo como as economias familiares sabiam preparar-se para o Inverno aproveitando os frutos da época. Agora, com as arcas congeladoras, é possível ir gerindo a matéria prima ao longo do ano, e assim há sempre marmelada fresquinha à espera de um guloso que não resista a prová-la acabadinha de fazer!
ResponderEliminarEu não me importava de "meter o dedo", mas, enfim, tenho que resistir...
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