Há momentos que são irrepetíveis, momentos pessoais, momentos esperados e nunca desejados. O dia de hoje termina numa aura de memória antecipada, uma data que vou viver e nunca mais esquecer. As datas de dor não têm cor, transformam-se em mantos diáfanos de tristeza.
Sempre me questionei como é que encararia os momentos finais da vida com a cabeça a funcionar em toda a plenitude. Deveria ser uma tragédia para ele e para mim. Cuidava-se, cumpria escrupulosamente com a medicação e era frugal na alimentação, exceto aos sábados quando ia almoçar connosco. Não tinha falta de apetite. Os anos acumulavam-se e os dias desapareciam como gotas de água nas areias. Ficava apreensivo quando passava uma semana ou um mês, porque era sinal de que o fim se aproximava a uma velocidade assustadora. Gostava de viver, confessou-me vezes sem conta à sua maneira. Assustava-se com a passagem do tempo. Eu desvalorizava o fenómeno e apontava para a coleção de anos que já levava nas pernas, e ainda por cima com saúde. Calava-se. Eu sabia que gostava de viver. Uma vez disse-me de forma muito direta, o que não era muito habitual, que tinha pena de deixar de viver, não disse morrer, foi mesmo assim, "deixar de viver". Hoje deixou de viver oficialmente, mas já tinha deixado de viver há treze dias. Treze, um número de que gostava muito, talvez por ter nascido num dia treze. Andava há algum tempo a ficar um pouco alquebrado e eu muito preocupado. Instintivamente desvalorizei. Depois adoeceu com evidência indiscutível. À distância fiz pela segunda vez o mesmo diagnóstico. À noite fui vê-lo e fiz-lhe a barba. Tinha um cuidado muito especial com a aparência. Foi a primeira vez que fiz a barba ao meu pai, e usei a minha máquina. - Boa máquina. Disse. - Gostas? - Gosto. - Então eu empresto-ta. - Obrigado. Coloca aí na minha mesa-de-cabeceira. - Olha lá, sentes-te muito mal ou tens dores? - Não. Sinto-me apenas triste. A forma como confessou o seu estado de espírito perturbou-me, não fazia parte da sua característica mostrar este tipo de faceta. Fiquei com a certeza de que se tinha apercebido da gravidade do seu estado. Tentei desviar a conversa e assumir uma natural superioridade, que ajuda muito quem se encontra em estado de angústia. Depois foi a confirmação do diagnóstico, a hospitalização e o telefonema, o último, a dizer-me que não se sentia bem, que tentei compensar com a minha presença ajudando a inquietude da sua alma através da manipulação dos músculos. No dia seguinte, inesperadamente, deu-se o apagamento da vida de relação. Um momento que complicou a situação para nós, clínicos, mas que lhe anestesiou a angústia dos dias finais que se lhe seguiriam. Uma bênção para quem sofre mas um terrível sofrimento para quem tem de se confrontar com a ausência da dignidade da morte anunciada, uma estranha e incompreensível forma de se mostrar.
Hoje libertou-se sem saber e sem dor. Eu também me libertei mas com dor e fiquei a saber o sabor amargo da existência.
É estranho morrer. Mas viver é ainda mais estranho.
Tinha um sorriso encantador, belo e sedutor.
Caro amigo, um grande abraço solidário na sua tristeza pela morte do seu pai. Pelo que conta, teve uma vida longa e bem vivida até aos últimos dias, "morrer de velhice" tem esse lado mais cruel da consciência de que a vida se escoa mas é uma bênção quando comparada com as mil formas de sofrimento que acarreta a doença prolongada. Desejo-lhe que possa recordar sempre o seu pai com tudo o que a vida lhe proporcionou, aqui ficamos ansiosos pela escrita dessas memórias. Um abraço amigo
ResponderEliminarObrigado Suzana
EliminarO Céu ganhou uma estrela! Irá, a partir de agora, tornar-se mais luminoso. Envio-lhe, caro Amigo, um caloroso abraço e os votos, que de lá de cima, continue a receber a força e o ânimo daquele que sempre amou e admirou.
ResponderEliminarObrigado, Bartolomeu.
ResponderEliminarMeu caro Professor Massano Cardoso faço minhas as palavras da Suzana e do Bartolomeu e associo-me com a estima e amizade ao abraço solidário. A libertação da dor dos que não são mais próximos não nos liberta a nós da dor, diz bem...
ResponderEliminarNão, mas com o tempo transforma-a numa doce saudade, uma presença permanente que também nos faz companhia.
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