Não me posso esquecer. É impossível. Ainda tenho razão e uma memória que me obriga amiúde a mergulhar no passado, alimentando-me de histórias, de carícias, de imagens, de sons, de silêncios, de esperanças e de muito amor. Ouvi da sua boca pela primeira vez quem era o São Brás. Um santo, médico, bispo, que fez milagres com as doenças da garganta. Ela sabia o milagre da criança aflita com uma espinha espetada na garganta que não conseguia respirar, quando, ao passar por ela, a mãe pediu ao santo para a salvar. São Brás, sem qualquer instrumento, retirou da garganta uma enorme espinha que a ameaçava de morte. Deliciava-me com esta história e comecei a prestar um profundo respeito e admiração pelo santo. Talvez tenha sido o primeiro santo cuja data decorei e nunca mais esqueci, três de fevereiro. Todos os anos, enquanto fui criança, ouvia deliciado a mesma história e não deixava de colocar a minha pequena mão na garganta como a querer tirar uma espinha imaginária, embora já tivesse tido alguma experiência da incomodidade provocada por uma ou outra, pequena, claro.
Perguntei-lhe por que é que a mãe não lhe tinha dado uma pequena bola feita de miolo do pão para engolir e assim tirava a espinha. Era o que fazia comigo. Dizia que naquele caso a espinha, sendo muito grande, e estando espetada profundamente na garganta, não podia ser retirada dessa forma. Eu ouvia, fascinado, a história, afagando a garganta como se estivesse a sentir a maldita espinha. Depois vinha a pequena festa, pequena mesmo, mas mesmo assim bonita, a que não faltava os beijinhos e os abraços de parabéns. Era o dia do seu aniversário. Todos os anos ouvia a lenda do São Brás. Depois, mais tarde, já não lhe pedia para me contar novamente a história. Não precisava de a ouvir da sua boca, ouvi-a mentalmente, vezes sem conta sem deixar de afagar a garganta. Quando não estava com ela telefonava-lhe e começava a conversa dizendo, sabes que dia é hoje? É o dia do São Brás. Imagino que deveria estar a sorrir. A seguir dava-lhe os parabéns e um beijinho por mais um aniversário. Agradecia e dizíamos as trivialidades próprias do dia. Continuámos com este ritual durante muitos anos. Mesmo quando a cabeça começou a render-se ao inevitável, nunca deixou de ter a lucidez suficiente e uma explosiva alegria nesse dia que começava sempre com a mesma frase, sabes que hoje é o dia de São Brás? Ria-se. Sim, nos últimos anos ouvia-a rir-se do outro lado sempre que lhe lembrava o santo. Mesmo no último ano em que fez anos, não deixei de lhe dizer, sabes que dia é hoje? Respondeu-me: - Sei filho. Sei. É o dia de São Brás? - É! Uma pequena gargalhada, ou algo similar, saiu-lhe da garganta como se estivesse abençoada pelo santo.
Hoje é o dia de São Brás. Já não lhe posso perguntar, sabes que dia é hoje? É o dia do santo, cuja lenda deverá ter sido a primeira, ou uma das primeiras, que fixei e que todos os anos, neste dia, gostava de a ouvir pela boca minha mãe.
- Sabes que dia é hoje?
Oiço, finjo ouvir, gostava de ouvir a resposta, é o dia do São Brás. Entretanto afago com a mão a garganta como fazia em pequeno...
Que bom e que conforto se sente, ao recordar aqueles mais amamos e que mais nos amam, apesar de alguns, estarem fisicamente ausentes.
ResponderEliminarÀ uns anos, um dos meus filhos, ainda pequeno, espetou uma espinha na garganta. Nunca me sucedeu mas pude perceber que a situação, para além da dor, provoca algum pânico. Recorri imediatamente à clinica mais próxima onde foi prontamente assistido por uma médica ainda novita. A moça sentou-o numa cadeira, colocou uma luz fortíssima muniu-se de uma pinça comprida e de uma espátula mas, chegar à espinha é que não conseguia. Depois de várias tentativas frustradas, decidiu pedir a ajuda a um colega mais velho. O colega veio, colocou os óculos meia-lua, observou, pegou nos mesmos utensílios, tentou uma, duas, três vezes e sentenciou; vai ter de levar o menino ao hospital, aqui não temos os meios necessários para extrair a espinha. Estava o Sr. Dr. a acabar de proferir a sentença, entra no consultório um enfermeiro já entrado na idade e pergunta: então o que temos aqui? O Sr. Dr. não lhe respondeu, voltou as costas e regressou para onde tinha estado, a medica novita, um pouco atrapalhada esclareceu-o da situação. Então, o Sr. Enfermeiro, pediu licença, pegou numa gaze, disse ao miúdo para deitar a língua de fora; assim que ele deitou, o Sr. Enfermeiro segurou-lha com a gaze, puxou, a garganta veio atrás, e a espinha quase que apareceu ali mesmo à mão de semear, bastou pegar nela com a pinça e, em 2 segundos o miúdo estava livre do tremendo pesadelo.
Não lhe perguntei o nome, mas é muito provável que se chamasse Brás... com toda aquela simplicidade, só podia.
;)
Como o compreendo, caro amigo. Passado o grande choque do desgosto, conseguimos felizmente ir "reconstruindo" os laços, conformando-nos com o imaginário que nos traz de novo para perto o que já não podemos alcançar. AO menos isso. Um abraço.
ResponderEliminarA história do Touro Azul é a história que me recordo há muitos anos e todos os anos porque tb a conto muitas vezes. Ainda hoje me perguntaram: "Lembra-se da história do touro azul que nos contou há dois anos? Ontem à noite pensei nesse conto, pode-nos contar outra vez? Quando foi que leu essa história?" Expliquei. "Conte-nos, por favor!" Não, hoje não, mas amanhã conto.
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