Gosto de ler, mas não tenho muito tempo, cada vez tenho menos. À medida que o meu tempo avança, e o fim se aproxima, tudo se acelera, tudo se agiganta, como se assistisse a uma estranha dilatação do espaço onde me sinto meio perdido e meio achado. Consigo, mesmo assim, escrevinhar alguma coisa entre duas gotas de tempo que caem à minha frente. Escrevo para não sentir o frio incómodo da triste chuva da vida que sombreia e arrefece quase tudo o que me aparece. Vivo cada livro que leio, entro nas páginas, sejam quais forem, sento-me junto dos protagonistas, olho-os, ouço-os e desfruto as suas dores, angústias, prazeres e amores sem que me vejam, sem que sintam a minha presença. Não interfiro em nada do que fazem, dizem ou pensam, o único que muda sou eu.
Na semana passada telefonaram-me a dizer que tinham entregado na faculdade um pequeno volume vindo de Inglaterra. Fiquei intrigado, não tinha encomendado nada e quando faço uso a minha morada. O que será, pensei. Entretanto dei ordens para que o colocassem na minha secretária. Fiquei com curiosidade. Hoje, depois de ter dado a minha primeira aula, fui ao gabinete e vi o embrulho. Peguei e senti que deveria ser um livro. Como recebo livros de várias organizações, pensei que fosse mais um, mas estava manuscrito e fugia ao habitual. Abri o pacote e deparei-me com um livro, "Burial Rites" de Hannah Kent. Estranho! Eu não encomendei o livro. Abro-o e ao começar a lê-lo lembrei-me de há algumas semanas ter visto uma fotografia de uma rua onde numa livraria estava exposto o livro. As ideias começaram a associar-se à procura de um corpo comum, pronto para contar uma história. Foi então que li a dedicatória, letra cuidada, desenhada, traço inequivocamente feminino e, sobretudo, encantadora, "Outros rituais... I hope you like it... Gratidão/reconhecimento, belos momentos de evasão proporcionados pelas escritas de vexa no 4r... MM". Sorri. Nunca esperei que um dia pudesse receber um livro em "paga" do que tenho escrito. Um gesto doce que inebria os sentidos de quem anda à procura de algo que nem sabe o quê. Levei-o para a segunda aula. Assistiu à mesma, enquanto eu olhava-o com desejo de entrar nas suas páginas e viver aquele passado, drama, enredo e vida numa época e num local que sempre me fascinou, terras e gentes de sagas surpreendentes.
Gosto de rituais, gosto de jogar e falar com símbolos, uma língua muito diferente, mas que tranquiliza a minha mente. Agora vou lê-lo, vou entrar dentro das suas páginas para ver, ouvir, sentir e dormir com aquela gente, sabendo que posso fazer amigos ao longe, pessoas que pensam em mim, e que se sentem bem com aquilo que digo, penso, sinto e escrevo. Afinal é simples viver, basta escrever e, também, ler.
Um texto com muito carinho. Talvez um convite à leitura.
ResponderEliminarAinda conservo o cheiro dos primeiros livros que li. Parece-me sentir os dedos carregando nas folhas procurando entender o enredo e a história de cada personagem.
Magnifico!
ResponderEliminarJá não é a primeira vez que o digo: O Dr. Massano será seguramente um excelente médico mas a sua escrita não lhe fica atrás.
ResponderEliminarUm gesto lindíssimo e muito merecido!
ResponderEliminarThanks! Adorei a reaccao do Sr Prof Massano...
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