Levantei-me cedo. Esta noite sonhei que nem um perdido, vi e vivi aquilo que julgava ser real, mas não, afinal era tudo uma fantasia. Toca o alarme e toca a levantar. Fiquei aborrecido, não porque os sonhos fossem grande coisa, belos, prazenteiros ou coloridos, foram depressa esquecidos, mas por ter de viver um novo dia atormentado pelo dever. Cheguei à estação, senti o incómodo do frio e o calor de uma pequena conversa. A estação é o melhor sítio para encontrar quem não encontramos no dia-a-dia. Antes que dissesse qualquer coisa, adiantei, hoje vou em sentido contrário, vou para o Porto, vou argumentar uma tese. Riu-se, não sei se da minha espontaneidade ou com inveja, porque ter de ir todas as semanas a Lisboa cansa e enjoa. Ainda falámos de algumas coisas. O resto fica para outro dia, ocasiões não irão faltar. Boa viagem, boa viagem, repliquei.
Chego cedo, chego sempre cedo e parto sempre cedo, não gosto de entrar em conflito com o tempo, causa-me angústia e medo, sendo assim prefiro chegar e partir mais cedo.
A candidata foi minha aluna, reconheceu-me e disse logo de chofre, foi meu professor há vinte e três anos. Credo, pensei eu, há tanto tempo. Ainda ontem, à noite, escura e fria, uma senhora simpática, no final de uma audição em que a minha neta atuou, e que me convidou a assistir, aproximou-se com suavidade e elegância e disse, não resisto a cumprimentá-lo, foi meu professor há vinte e três anos. Beijou-me. Fiquei satisfeito com o beijo, com a recordação e a sensação de ter contribuído para despertar uma agradável emoção.
As provas correram bem. Fiz uma pequena intervenção, realçando alguns aspectos que provocaram alguma emoção na candidata e nos restantes membros, como tive oportunidade de sentir no final. Longe mim saber que era capaz de provocar alguma emoção. A palavra, quando dita no seu verdadeiro lugar, na mina de ouro da argumentação, tem esse condão, que é transformar o trivial em emoção. No final cumprimentei-a e felicitei-a dentro do espaço e das conveniências da ocasião. Ao sair, via-a ainda mais uma vez na sala. Cumprimentou-me novamente e obrigou-me ir ter com ela. Abraçou-me e agradeceu com tão sentida emoção a ponto de ouvir o acelerar do coração. É curioso despertar e sentir o verdadeiro sentido de uma emoção. Foi o que fiz e foi o que senti. Fiquei feliz. Ainda me perguntou se não ia almoçar. Vontade não me faltou, mas estava desejoso de ir ao restaurante da estação para comer algo que é tradição, tripas à moda do Porto. Disse-lhe que ficava para uma outra oportunidade. Estou crente de que há sempre uma nova oportunidade. O taxista quis que fosse para as Devesas. Não quero, quero ir para Campanhã. Mas é mais barato. Não importa, quero ir para Campanhã. Eu faço o que o cliente mandar. Obrigado. Cheguei, entrei no restaurante e não tinha lugar. Indicaram-me um, mas já estava ocupado. Não faz mal, o senhor vai sair. Sentei-me, olhei para o senhor, e aquelas faces fizeram-me recordar a última visita a um santuário da gastronomia. Faces vermelhuscas, com um copo de uísque, a testemunhar que deveria ser o mesmo que vi da última vez. Com um sinal sorridente obrigou-me a sentar. A lista caiu-me nas mãos e não encontrei as tripas. Carago! E agora? Optei por um cozido à portuguesa. E que cozido! Travessa bem abastecida. Comi mais do que devia, mas teve que ser porque não tinha ninguém por companhia. Soube-me bem o ambiente da "tasca", as conversas dos demais e a simpatia do pessoal. Fiz um pequeno historial do dia, e ainda não passou muito tempo depois do meio-dia. Agora, sentado numa estação fria, dou azo a um desejo, descrevo a sensação de um novo dia transformado numa fonte de emoção.
A propósito eu também fui seu aluno há 3, 4 anos e estive também nessa audição !
ResponderEliminarAgora muito menos a propósito, mas também não resistindo a comentar,um pouco na linha de alguém que não resistiu a cumprimentá-lo - e aproveitando a sua citação:
«Esta noite sonhei que nem um perdido, vi e vivi aquilo que julgava ser real, mas não, afinal era tudo uma fantasia. Toca o alarme e toca a levantar. Fiquei aborrecido, não porque os sonhos fossem grande coisa, belos, prazenteiros ou coloridos, foram depressa esquecidos»
Respeitosamente, permita-me que lhe diga que os sonhos não só são uma estranha obrigação biológica - uma vez que o sono REM é uma fase normal do sono - e por isso mesmo algo que acontece todas as noites como também - e aqui chamo particular atenção - poderão decorrer num estado de consciencia semelhante, ou superior em termos de acesso a certas capacidades, ao periodo de vigilia - qual estado de perfeito piloto automático ( que se reflecte nos sonhos normais ). Ora esses sonhos são chamados lúcidos.
Aposto que se ontem tivesse acordado de um sonho destes - dos quais provavelmente se recordará da sua infância, periodo em que ocorrem com grande frequencia - não iria ficar mesmo nada aborrecido ( ou talvez ficasse ! )
Cumprimentos
Um abraço.
EliminarJá ouvi, ou li, não me recordo ao certo; que nunca sonhamos a cores. Pois eu sonho! Sonho imenso. E já passei por várias fases. Numa delas, sonhava quase sempre que voava; mas não como se vê nos filmes, o super-homem. Não. sempre que "voei" ia direito, em pé e nunca atingia altitudes elevadas. Estes voos, ofereciam-me uma sensação imensamente gostosa ao deslocar-me sem limites, suavemente e observando tudo de um ângulo muito agradável. Passei também por uma fase nada agradável em que caía abruptamente de uma grande altura, via o chão aproximar-se vertiginosamente e antes de me estatelar acordava dando um valente salto na cama. Este sonho deixava-me aborrecido e o que vale é que a fase durou pouco. De resto, sonho frequentemente que estou a viajar de mota ou de barco à vela, por locais desconhecidos, encontrando sempre pessoas com quem converso. O raio é que depois de acordar, lembro-me perfeitamente dos sonhos mas não das conversas. Acho que vou passar a levar um gravador para os sonhos...
ResponderEliminar;)
V.Exª. dorme bem e sonha, como eu o invejo! Não pode fornecer-me os ingredientes?
ResponderEliminarCumprimentos
Não durmo tão bem como pensa. Já dormi muito melhor. Durmo muito menos do que dormia e venho de uma família de dorminhocos. Parece que fugi à regra.
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