Após o almoço calcorreamos velhas ruelas sob um suave e doce calor, a fazer horas para ver o que não vimos de manhã. O almoço decorreu sob a égide dos produtos da serra, enchido, carne e vinho. O cansaço, despertado pelo tempo de espera, levou-nos à procura de um banco. Sabia que nas redondezas havia um pequeno jardim. Abalei convicto de encontrar um assento que propiciasse brincar com o relógio e falar sem tempo. Debaixo da árvore estava um pequeno banco. Olhei e vi um novelo cinzento e negro a querer rebolar-se e saltar para o chão. Pequeno, muito pequeno e negro, o novelo humano começou a descer, andando à pato, cabeça pendida e bossa dorida. Aproximou-se atraída por tão inusitada figura e baixou-se. Começaram a falar. Ouvi: - Sim, ando a passear um pouco, mas moro ali em baixo no início da rua. Vou para casa. A fala era excelente e as ideias fluíam-lhe na razão inversa do seu corpo meio mirrado e que deverá ter perdido muitos centímetros à sua estatura inicial. Simpática, e desejosa de dois dedos de conversa, parou e começou a contar muitas coisas. Tinha que ser, pensei. Interrompia-a e perguntei-lhe qual era a sua graça. - Maria dos Anjos. - Posso saber a sua idade? - Sim. Tenho 94 anos. Nasci a 13 de junho, no dia de Santo António. A felicidade de ter nascido num dia tão importante levou-a a uma tentativa de levantar a cabeça, e sorriu, mostrando dois velhinhos caninos a ornamentar um enorme diastema avermelhado. Entretanto, algumas repas de cabelo branco e fino teimavam em mostrar-se fora do velho lenço negro. - O cabelo está a incomodá-la? - Não. Eu tive sempre um cabelo muito comprido, quase que me chegava aos pés. Mas sabe, naquela altura os pais não deixavam cortar os cabelos às filhas. Ainda tenho o cabelo comprido, mas tive que fazer tranças, porque não consigo levantar os braços para trás. Enquanto dizia isto, para provar, tirou o lenço negro para que pudéssemos ver duas tranças entrelaçadas numa espécie de rodilha. - Afinal, a senhora vive com quem? - Com o meu irmão e a minha cunhada. - Que idade tem o seu irmão? - Oitenta e seis anos. Olhe, meu senhor, eu já não consigo fazer o comer. Disse com muita pena. - Mas sempre tem quem o faça para a senhora. - Pois. Sabe uma coisa? Vou-lhe confessar. Não sei o que ando a fazer. Já estou cansada de viver. São muitos anos. - Não diga isso. - Digo, digo. Já tenho muita idade. - Mas ainda se mexe bem e fala com tanta desenvoltura. Tem uma cabeça a trabalhar como deve ser. - Pois! Como quem diz, tens razão, mas por isso mesmo é que ando cansada de viver. Mais uns momentos de conversa, assuntos de outros tempos, uma quinta onde cresceu, viveu e trabalhou e despediu-se. A casa não ficava muito longe, segundo disse. Espero que o seu fim esteja, apesar de tudo, muito mais longe.
No dia de Santo António vou lembrar-me da Maria dos Anjos, um delicado novelo de vida.
O "novelo", ganhou, de certeza, animo com o encontro...
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