Mergulhei sem querer no interior de uma zona que conheço relativamente bem. Lembro-me perfeitamente da minha primeira e grande viagem de camioneta da minha vida. Era pequeno, tão pequeno que provavelmente ninguém dava pela minha conta. Não me recordo se já tinha entrado na escola. Se andava deveria ser há muito pouco tempo, porque ainda não sabia juntar as letras. Só sei que fui numa camioneta velha, barulhenta e ronceira pela estrada de macadame. Recordo as curvas, voltas e mais voltas até chegar à ponte sobre o rio Mondego. Depois começou a subir, espirrando e tossindo por todo o lado. Olhava para trás e via a nuvem de pó que escondia o rio, as escarpas e as árvores. De lado conseguia ver muito bem. Fomos por aí acima, chegámos a Tábua ao fim de muito tempo. A viagem continuou num dia cinzento, frio e chuvoso até chegar a Midões. Uma viagem muito longa para a altura e que me permitiu ver novas regiões. O meu pai, que nunca parava de conversar sempre que encontrava alguém, lá me ia perguntando se tinha sede ou fome. Mesmo que tivesse que diferença é que fazia, não tinha nada à mão para mastigar, exceto uns biscoitos maravilhosos que trazia embrulhados num guardanapo. Mas se os comesse ficava com sede e eu não tolerava a sede. Por isso não os comi, com medo. Ouvia o meu pai, que falava com o motorista, um homens alto, magro e que era nosso vizinho, sobre o João Brandão, um bandido que assaltava e matava as pessoas pendurando algumas na ponte de Tábua. Não gostei nada da conversa e fiquei com medo de que ele andasse por ali. Perguntei-lhe onde é que ele estava. Sossegou-me dizendo que tinha morrido, dois de ter sido desterrado para África. Mesmo assim não fiquei com boa impressão das histórias que contavam a seu propósito. Até chegou a dizer-me que ia até Santa Comba onde encontrava refúgio numas cavernas que devia haver lá. - Onde? Perguntei. - Nas Hortas! - Nas Hortas? No pinhal das Hortas? - Sim, ou então no Montragão. Não sei porque razão é que ele dizia aquilo, às tantas para me impressionar, misturando a realidade com a fantasia, o que era motivo suficiente para que construísse as minhas próprias "histórias", mesmo naquela idade. Ainda hoje recordo muito das minhas construções e confabulações sobre tão misteriosa figura que desde muito novo me atraiu e que me levou mais tarde a documentar-me de outra maneira.
O que é certo é que nunca mais esqueci aquela localidade, o João Brandão e a minha primeira viagem "longa" de camioneta com todas as fantasias inerentes. Depois, mais tarde, passei muitas vezes por aquele sítio, mas nunca me deu para parar e a visitar. Hoje tive essa oportunidade. Fiquei muito admirado com os solares e casas apalaçadas. Curiosamente, a festa do Corpo de Deus, por supressão do feriado, passou para o domingo seguinte. A igreja, de dimensões razoáveis, estava aberta, muita gente espraiava-se pelo adro e também pelo templo, com muitas crianças vestidas à maneira. Deverão ter cumprido mais uma etapa na sua formação religiosa.
Entrei no templo. Do lado esquerdo, numa capela lateral, estava pendurado um belo Cristo sem braços. Chamou-me a atenção pela beleza que irradiava. O meu primeiro pensamento foi para o mais famoso bandoleiro da Beira Alta. Deve ter estado naquele lugar e olhado para a escultura. Não sei o que terá sentido, e nem sei mesmo se rezou, eu não, não rezei, apenas admirei uma preciosidade e pus-me a imaginar onde estariam os seus braços, escondidos, atrás das costas, ou numa postura imaginária deixando a cada um a construção de um quadro pouco habitual. Fiquei a olhá-lo durante algum tempo, um tempo que mergulhou noutros tempos, no meu e no de outro, combinando tempos diferentes no mesmo tempo.
Caro Salvador M Cardoso;
ResponderEliminarPermita-me que lhe pergunte, em que templo afinal esteve?
Tábua? Midões? Casal da Senhora? Ou outra qualquer terra pertencente aos povos de Midões?
Atenciosamente
JPA
Midões.
ResponderEliminarConheço mal esses recintos do nosso belo país, mas com este "guia turístico" não há desculpas para não ir lá na primeira oportunidade. O crucifixo e lindíssimo.
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