Já não a via há um ano. Entrou ao final da tarde com um belo sorriso lançado do alto da sua delicada estatura. Um sorriso franco, legítimo, suave, espontâneo como a querer demonstrar o desejo de viver com alegria. Seduz-me sempre este tipo de atitude, em que os olhos falam como almas verdadeiramente livres, sempre à espera de um momento de conversa, de alento, de conforto e confirmar que vale a pena ter esperança. Misturou-se tudo na minha cabeça, e o cansaço que se vinha acumulando ao longo do dia desapareceu como que por magia. Perguntei-lhe se estava tudo bem, se não tinha havido qualquer interocorrência durante o último ano, uma pergunta banal, formal mesmo, e para a qual anseio sempre uma resposta afirmativa. Sorriu. - Agora parece que está tudo bem, só tive, entretanto, um carcinoma papilar. - Como?! Perguntei ansioso e preocupado, tanto mais que a forma como disse me perturbou imenso. Sorriu com muita simpatia, talvez para me tranquilizar, o que não é habitual ver quando se está perante um médico. Fiquei embasbacado. - Como abordar o assunto? Pensei. A sua inteligência pôs-se em marcha e facilitou-me a vida. Explicou que tudo tinha decorrido na sequência de um grave acidente de viação. Por causa disso teve de fazer vários exames e num deles foi-lhe detetada uma anomalia que teve de ser esclarecida e que não tinha nada a ver com os traumatismos. Afinal tinha um cancro. Foi operada. - Está tudo resolvido, senhor doutor. E eu calado com o dedo a imitar uma esferográfica pronto a preencher a sua ficha clínica. Nunca largou o seu sorriso, o qual me tranquilizava à medida que fazia a sua narrativa. - Li há dias que o cancro era uma questão de azar. - Pois! Comentei instintivamente, embora naquele caso eu considerasse estar perante uma questão de sorte. Não sei se entendeu o alcance da minha interjeição. Julgo que sim. - Sabe uma coisa senhor doutor? Sempre que ouço a palavra cancro assusto-me, provoca-me medo e ansiedade. - Claro. Pensei. - Mas já estou habituada. - Como? Não entendo, disse-lhe. Reforçou o seu encantador sorriso. - Há oito anos tive outro. Foi diagnosticado em fase inicial, fui operada e fiquei curada. Os meus pensamentos entraram num volteio difícil de explicar, mas a senhora continuou, e eu ia aprendendo. - Olhe, pior que um cancro é a depressão. Eu tive uma grave depressão há alguns anos, fiquei sem saber quem era e o que fazia. Uma coisa horrível. Sabe porquê? Por causa da morte de uma menina a quem eu queria muito. Interrompi-a. - Eu sei. A senhora já me contou no ano passado. Foi então que me lembrei de um drama terrível em que uma criança morreu num sofrimento difícil de entender por mais que os deuses ou os seus acólitos tentem explicar. A senhora voltou a reforçar o seu belo e tranquilizador sorriso. Senti que ficou agradecida, não só por não ter esquecido o que aconteceu, mas também por não ter que repetir a história. A conversa continuou e a senhora declarou que quer continuar a viver. Mostrou-me a cicatriz e perguntou-me se iria melhorar o aspeto. - Claro que vai. - E se não melhorar as rugas da velhice encarregar-se-ão de a esconder. Deu uma curta gargalhada.
No final despedimo-nos como velhos amigos e confidentes. O que é certo é que me deu uma lição de vida que não posso, e nem devo, esquecer. Os médicos também aprendem lições de quem nos consultam, e ajudam-nos a tratar dos nossos medos e angústias.
há cerca de 2 anos encontrei-me com um amigo que não via há mais de dez. É médico especialista de otorrino, fomos vizinhos e deixámos de nos ver quando mudei para o campo. Neste encontro, contou-me ter estado hospitalizado e sofrer uma operação, por ter fraturado um braço e se não fosse a visita da filha que também é médica, provávelmente já cá não estaria, porque da operação, sobreveio uma grave infeção respiratória.
ResponderEliminarPerante o meu ar de estupefação, sorriu e perguntou-me; estás surpreendido? Estou, respondi-lhe; é a primeira vez que sei de um médico hospitalizado e ainda para mais, quase a atá-las. Sorriu novamente e disse-me com uma expressão um tanto meditativa; pois olha que cada vez mais, é vulgar os médicos adoecerem.
Este encontro deixou-me a pensar; o mundo está realmente de pernas para o ar, quando eu era miudo, os médicos não morriam, tão pouco adoeciam. Todos os médicos da minha infância, eram homens de idade avançada, sisudos e até austeros, uns perfeitos baluartes de sustentação para quem os consultava, naquele tempo, já quase em última instância.
;)
Somos todos seres horizontalmente humanos...
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