Algumas vezes sou confundido pela existência da tragédia. O senhor entrou. Olhei-o. Vinha dentro de um fato macaco com sinais evidentes de uso, bem surrado, como se tivesse sido empurrado à pressa para aquele ato, e com um olhar triste e distante. Tive dificuldade em compreender a empresa para quem trabalhava. Pronunciava-a com se tivesse um sotaque do leste europeu, mas o homem tinha nome de português.
- Desculpe, mas não entendo o que diz! Isto, depois de lhe ter perguntado várias vezes.
- O senhor não tem uma identificação qualquer da empresa para a qual trabalha?
- Não. Não tenho.
- Que chatice. Mandam as pessoas para serem observadas sem os elementos necessários. Desabafei.
- Chatices já eu tive nos últimos dias. Respondeu depois de ter escrito o nome da empresa para quem trabalhava. Uma subcontratação; fenómeno muito habitual nos tempos que correm.
A forma como se exprimiu, misto de indignação e de tristeza, levou-me a interrogá-lo.
- O que é que lhe aconteceu? Qual foi a chatice?
- Morreu-me uma filha há poucos dias com vinte e dois anos.
- Como? Morreu-lhe uma filha com vinte e dois anos? Morreu de quê? Perguntei de jacto, ansioso, desnorteado e, até, envergonhado pela desproporção entre a minha "chatice" e o drama do senhor. O senhor explicou-me que tinha sido devido a lúpus. Começou aos dez anos. Morreu. Ainda não lhe tinha feito mais perguntas, quando respondeu a uma que lhe ia fazer em seguida.
- Tenho um filho, mais novo, mas sofre também da mesma doença. O exame foi feito, os conselhos dados e as respostas, duras, curtas e sinceras, saíam frias, enquanto ia explicando que tinha de trabalhar mesmo com o corpo da filha recém enterrada.
- Tenho que trabalhar.
- Mas está longe de casa. Só vai ao fim-de-semana?
- Sim. Vou. Tenho que trabalhar. Sou eu que ganho a vida. Pensei, tem que ganhar a vida ao mesmo tempo que a vida lhe roubou a sua vida. E há quem chame a "isto" tudo, vida...
Do "Cancioneiro" de Fernando Pessoa;
ResponderEliminarDorme, que a Vida é Nada!
Dorme, que a vida é nada!
Dorme, que tudo é vão!
Se alguém achou a estrada,
Achou-a em confusão,
Com a alma enganada.
Não há lugar nem dia
Para quem quer achar,
Nem paz nem alegria
Para quem, por amar,
Em quem ama confia.
Melhor entre onde os ramos
Tecem docéis sem ser
Ficar como ficamos,
Sem pensar nem querer,
Dando o que nunca damos.
Um drama difícil de imaginar, o desse homem, ao pé disso não podemos deixar de relativizar o que nos vai acontecendo, mas na verdade cada um carrega a sua cruz conforme pode e sabe e cada momento nos parece único e insuportável quando nos faz sofrer.
ResponderEliminarComo uma amiga me faz recordar: “devemos agradecer as nossas bençãos”
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